APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta)

eduardo haak, 2018

(Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)


OBESIDADE MÓRBIDA, Eduardo Haak

O amor que não é posto à prova é um amor vacilante, assim como é duvidosa a virtude que desconhece o vício. O amor, mais do que sentimento, é compromisso integral com o ser amado. Eu amo Montserrat, apesar do tempo que passou e das modificações impostas por ele.

 

Quando nos casamos Montse estava alguns quilos acima do peso, o nervosismo causado pelos preparativos das bodas levou-a a comer muito. Há pessoas que buscam atenuar suas angústias comendo, outras bebendo, outras tomando drogas. Minhas inquietações eu sempre aplaquei com sexo, atos vicários praticados com mulheres de programa, algo que me dava uma euforia vazia que me deixava muito infeliz depois.

 

O acúmulo de adiposidade de Montse, contudo, não parou com a acomodação de nossa rotina de casados. Em menos de um ano ela havia engordado trinta quilos, suas roupas não cabiam mais, então ela foi a um desses médicos de regime. Foi a primeira de uma série de dietas fracassadas que a vi fazer. Seguiram-se a isso internações em spas, terapias com psicólogos, outras dietas, Montse emagrecia um pouco e acabava engordando tudo de novo e cada vez mais.

 

Sua capacidade de locomoção acabou sendo afetada e ela não saía mais de nosso apartamento. Eu ainda tentava fazê-la se sentir desejada lhe exibindo ereções e sussurrando em seus ouvidos palavras blandiciosas, não que Montse me despertasse desejo, as ereções eu obtinha artificialmente com aquele remédio, Montse tentava corresponder, talvez percebesse meu esforço e buscasse se esforçar também, o fato é que depois de um tempo acabamos desistindo, sabíamos que era tudo encenação.

 

Levei o prontuário de Montse a um médico que me disseram ser cobra no assunto, o doutor Heliogábalo. Enquanto folheava o calhamaço ele foi me fazendo perguntas, perguntas aparentemente despropositadas, você tem aflição de papel alumínio?, você joga futebol de botão?, até que disse, sua mulher não tem problema de tireoide, não tem disfunção hormonal, não tem trauma de vida passada, não tem trauma de vida presente, quer saber qual o problema da sua mulher? O único problema? Ela come muito.

 

Instalei uma câmera escondida no quarto. Montse não conseguia mais sair de lá, as portas de nosso apartamento eram todas estreitas, as janelas também, os apartamentos de hoje são todos umas merdas. Eu queria construir uma cama de alvenaria, a única capaz de aguentar o peso de Montse, mas o síndico não autorizou. Montse então passou a dormir só no colchão. Pus um vaso sanitário de concreto no quarto e uma acompanhante para ajudá-la enquanto eu passava o dia fora, trabalhando.

 

O que as gravações revelaram confesso que me surpreendeu. Sempre que fazíamos as refeições juntos Montse comia de modo frugal. Mas na minha ausência ingeria o tempo todo quantidades tremendas de doces, salgados, embutidos. Não conseguindo mais sair do quarto, devia dar dinheiro à acompanhante para que ela fosse comprar esses itens todos e depois jogasse as embalagens fora.

 

Despedi a acompanhante e tirei licença no trabalho. Revistei todo o quarto e coloquei num saco de lixo tudo o que encontrei de comestível. Montse, apesar da aflição de se ver privada de suas reservas calóricas, pareceu conformar-se com minha atitude. Eu estava determinado a resolver de uma vez por todas aquele problema. O amor é um compromisso integral com o ser amado, na riqueza ou na pobreza, na saúde ou na doença, na esbelteza ou na obesidade. Agachei-me para espiar de novo se não havia mais nenhum alimento escondido debaixo do colchão, então Montse se deixou cair sobre mim e me manteve debaixo de seus quase trezentos quilos até eu entrar em óbito por asfixia mecânica. Quando me percebeu inerte, levantou-se, pegou o saco de guloseimas e foi se sentar. Ficou ali, sentada no vaso sanitário de concreto, devorando marzipãs e olhando para o meu cadáver.


 

.

PECADORES, Eduardo Haak

Saio da sacristia e entro no confessionário. Ouço confissões por quarenta minutos e concedo perdão sacramental a cinco mulheres, que agora estão sem pecado e que se morressem ao sair da igreja, atropeladas por um carro ou degoladas pelos viciados que se ajuntam num terreno aqui próximo, gozariam da eterna bem-aventurança. Mas sei que ainda hoje elas cometerão novos pecados, pecados medíocres de velhas idiotas que passam o dia vendo TV. Isso me enche de desânimo, pois me dá a sensação de que o trabalho que faço é inútil.

 

Em doze anos de sacerdócio eu ouvi a confissão de um único grande pecado, uma jovem que me disse ter matado e ocultado o cadáver da filha recém-nascida, filha essa gerada num relacionamento extraconjugal. Creio ter conseguido aliviá-la um pouco do terrível remorso, seu arrependimento era dilacerador e sincero, aquela criatura infeliz compreendia o significado profundo da vida cristã, inclusive foi meditando sobre sua história que notei que eu também estava me tornando um pecador medíocre, um homem que aos poucos estava sendo idiotizado pelas circunstâncias, um mundo obtuso de velhas noveleiras, padres efeminados, assistentes sociais, noias, teólogos da libertação.

 

Vou com alguns leigos levar mantimentos e roupas para os viciados que ocupam o terreno da prefeitura colado aqui à paróquia. A degradação causada pela presença deles é patente, furtos e roubos têm sido comuns na região, a própria igreja sofreu uma tentativa de assalto. Sei que boa parte do que estamos doando, comida, roupas, itens de higiene, serão trocados por pedras de crack e sei também que muitas pessoas na cidade nos acusam de sermos complacentes com esses vagabundos que se dizem doentes, virou moda agora dizer que dependência química é doença, doença porra nenhuma, o sujeito se droga porque quer, tinha mais é que exterminar essa cambada toda, botar todo mundo no paredão e meter bala, rá-tá-tá-tá-tá-tá.

 

De volta à igreja recolho-me ao quarto antes de ir ouvir novas confissões. Abro o livro Juízes e leio algumas vezes o trecho em que Sansão, o décimo terceiro juiz de Israel, mata mil filisteus usando uma queixada de jumento. Meu telefone faz barulho, eu olho, é mais uma mensagem da fiel que está apaixonada por mim e que tem me mandado fotos em que aparece nua. Deleto a mensagem, fazer sexo com ela não faria de mim um grande pecador, a fornicação é um dos atos mais medíocres que tem, ainda mais quando praticado com mulheres insignificantes como ela.

 

Volto ao confessionário e ouço a confissão de uma das velhas estúpidas que passam os dias vendo TV. Concedo-lhe o perdão sacramental, então puxo minha arma de dentro da batina e disparo contra seu crânio. O tiro arranca parte do osso occipital e deixa ali um buraco por onde sai grande quantidade de massa encefálica e sangue. Olho para o corpo inerte da fiel e penso, agora eu não sou mais um pecador medíocre. E meu trabalho não é inútil, pois cumpri à risca a tarefa de salvar almas que me foi confiada.



.

INTERNET, Eduardo Haak

Quando ficou viúva Violeta aprendeu a mexer no computador. Raul, seu marido, dizia que ela era burra e que nunca iria aprender, nem tirar carta você conseguiu, eu tive que comprar sua habilitação, lembra?, seu diploma de madureza também foi comprado, esqueça, madame, computador não é pro seu bico, quem sabe na próxima encarnação.

 

Violeta jamais quis dirigir, foi o marido que cismou com essa coisa de carro, as mulheres todas de seus colegas dirigiam e ele, orgulhoso, não podia ficar atrás, o diploma do supletivo também foi decisão dele, Violeta nunca se incomodou com a própria falta de educação formal, ela sempre gostou de ler, inclusive aprendeu a falar inglês sozinha.

 

As décadas de humilhações e maus-tratos a que Raul a submeteu, contudo, não deixou Violeta rancorosa, ela cuidou pacientemente dele durante sua doença, com pouca ou nenhuma ajuda das duas filhas, fato que ela também encarou sem mágoa.

 

Passadas algumas semanas da morte do marido finalmente Violeta começou a mexer no computador. Logo entendeu como a máquina funcionava, navegador, buscador, login e senha, o conhecimento todo acumulado pela humanidade acessível a um toque de dedos, aos setenta e nove anos ela estava descobrindo o fascinante mundo da internet, seus dias passaram a ser ocupados com mensagens de e-mail, vídeos, cursos on-line.

 

Silmara e Sônia apareceram no apartamento, mamãe, nós queremos falar uma coisa com a senhora, desde que o papai morreu a senhora está muito sozinha, aqui, nesse apartamento, e a gente fica preocupada, sabe, a senhora não é mais nenhuma criança, e se a senhora tem um mal-estar e não tem ninguém pra socorrer?, então, nós pensamos que seria melhor que a senhora fosse morar numa casa de repouso, nós até já andamos vendo umas, tem umas ótimas, com quarto privativo e tudo, a senhora vai gostar, a senhora vai ver.

 

Talvez Violeta tenha feito vista grossa por muito tempo para o fato de as filhas serem pessoas más e dissimuladas. Na verdade, a repugnância que há muito sentia por elas eclodiu, numa epifania. A insistência no assunto casa de repouso significava que elas queriam vender o apartamento e dividir o dinheiro. Silmara tinha mania de comprar bolsas e sapatos, Sônia viajava todo ano para a Europa, nisso elas saíram ao pai, o Raul só pensava em dinheiro, embora o cretino não tenha conseguido acumular muito, seus únicos bens quando morreu eram o apartamento e um sítio em Ibiúna com impostos atrasados.

 

O horror e o desgosto de se dar conta de que havia colocado no mundo duas criaturas tão ordinárias deprimiu Violeta, por algumas semanas ela mal ligou o computador, a prostração acabou afetando sua saúde, ela teve uma crise de angina e as filhas usaram isso como a cartada final, mamãe, definitivamente a senhora não tem mais condições de morar sozinha, semana que vem nós vamos visitar uma das casas e a senhora vai conosco.

 

O dia de ir conhecer o asilo finalmente chegou, Silmara e Sônia entraram no apartamento simulando entusiasmo, e aí, mamãe, vamos lá? Violeta respondeu, minutinho, deixa eu desligar meu laptop. As três saíram ao hall e Sônia disse à irmã, tem cada velho bonito lá, né Sil?, acho que a mamãe, bonitona como ela é, logo vai se enrabichar com um.

 

Descendo no elevador com as filhas, vendo os números mudarem no painel, Violeta pensou, a internet tem mesmo coisas formidáveis. Em sua cintura havia quatro quilos de explosivos que ela havia comprado num site não indexado pelos mecanismos de busca, deep web, etc. Então ela fechou os olhos, emitiu um longo e áspero som nasal e apertou o detonador.



.

DIA DOS NAMORADOS, Eduardo Haak

Paula é dessas mulheres cuja excessiva beleza viola um pouco o princípio da realidade, Fernanda é dessas mulheres cujo magnetismo sexual atua de modo subliminar até que notamos estar completamente enlouquecidos por ela. Comprei de presente de dia dos namorados para Paula, a bela, um par de brincos de topázio e para Fernanda, a magnética, um par de brincos de ametista. Gastei a mesma coisa nos dois presentes, compensei com a quilatagem a diferença de valor entre as pedras.

 

Quando eu era criança meu irmão gêmeo e eu sempre ganhávamos presentes iguais, também usávamos as mesmas roupas e o mesmo corte de cabelo. Eu odiava isso tudo e senti um grande contentamento quando ele ficou careca e emagreceu, parecia que pela primeira vez na vida eu experimentava minha identidade corporal como uma coisa não usurpada, uma coisa que era minha, apenas.

 

Claro que precisei fazer análise, complexo de Caim é um troço sério, um problema que se não for enfrentado é capaz de liquidar completamente o sujeito, você não é culpado por seu irmão ter morrido de leucemia aos quinze anos, etc. Acho que consegui resolver essa questão, o problema que enfrento agora é outro, é o problema elementar de não poder estar em dois lugares ao mesmo tempo, dois jantares românticos de dia dos namorados, a beleza e o magnetismo, Paula e Fernanda. Não tenho mais irmão gêmeo para cogitar uma estratégia doppelgänger, nem sou como aqueles santos da igreja católica que tinham o dom da bilocação. Escolher uma ou outra, Paula ou Fernanda, é inviável, seria até mais factível ir jantar com as duas juntas.

 

Termino de almoçar e decido, vou inventar uma viagem de trabalho, uma viagem para Manaus, daqui a Manaus são cinco horas de voo, não teria como voltar a tempo para comemorar o dia dos namorados. Decido também dormir num hotel, mando mensagens para Paula e Fernanda falando sobre o imprevisto e dizendo que a região amazônica para aonde vou não pega telefone.

 

Consulto a disponibilidade de quartos em hotéis nos Jardins e vejo que estão quase todos cheios, pacotes de comemoração do dia dos namorados, etc. Consigo, por fim, me hospedar num na Rua São Carlos do Pinhal.

 

O quarto é bonito e espaçoso e a vista, embora seja de um andar baixo, me dá boa impressão. Deito-me e leio alguns folhetos que estavam no criado-mudo, um que é um cardápio resumido de um restaurante francês, magret de pato com pera ao vinho, foie gras, etc., outro sobre uma festa que vai haver hoje numa boate na cobertura do hotel, boate cujo nome e logotipo são os de uma companhia aérea já extinta.

 

Quando eu e meu irmão tínhamos treze anos nosso pai arranjou umas mulheres pra nós. A cidade onde estávamos passando férias não tinha motéis, então fomos com as mulheres até o aeroclube, onde havia no hangar a carcaça de um velho DC-3, no qual entramos e permanecemos por uma hora. A mulher que ficou comigo era loira, a que ficou com meu irmão era morena, as duas eram razoavelmente bonitas, bolas de vôlei idênticas, cortes de cabelo iguais, etc.

 

Tomo banho e decido ligar para a dona Haydée, Haydée tem um serviço de acompanhantes, sem divulgação, sem site na internet, o contato é feito por telefone e você só é admitido se for apresentado por algum antigo cliente. As garotas que trabalham para Haydée passam por uma seleção super-rigorosa, Haydée não contrata garotas que tenham tatuagens ou piercings, nem garotas que usem drogas ilegais (exames periódicos para detecção), dona Haydée, é o Maia, Roberto Maia.

 

Haydée me diz que hoje o staff está um pouco desfalcado, que ninguém quer passar o dia dos namorados sozinho, mas que ela vai dar um jeito de mandar alguém para mim lá por sete, oito da noite. Digo que quero pernoite, Haydée diz oui para fazer charme. Desligo e fico ali, deitado, pensando. Às vezes penso no meu irmão e tento imaginar de quem ele gostaria mais, da Paula ou da Fernanda, brincos de topázio ou brincos de ametista, a beleza que viola o princípio da realidade ou o magnetismo insinuante e, por fim, voraz.

 

Embora as garotas da dona Haydée nunca decepcionem totalmente, a última com quem saí não era lá essas coisas. E se eu pedisse duas, só pra garantir? Numa dupla a gente sempre acaba preferindo alguém. Eu já saí com duas garotas da Haydée ao mesmo tempo, as duas eram bonitas, mas tanto uma como outra tinham alguma característica física que me desagradava, uma tinha os olhos muito fundos, a outra tinha os dentes grandes demais. Peguei a que achei menos bonita e levei para a cama e disse para a outra, tire a roupa e finja que você está sendo possuída pelo fantasma do meu irmão, ela disse, o quê?, eu respondi, se encoste na parede e se toque e vá sussurrando, Marceeelo, isso-Marcelo, ela obedeceu e tirou a roupa e começou a se masturbar dizendo, isso-Marcelo, vai-Marcelo, etc.

 

Dia dos namorados, Haydée com poucas meninas no staff, se eu insistir nessa coisa de duas fatalmente vai acabar vindo alguma merda, eu preciso me livrar dessa mania de duplicata, Paula e Fernanda, Monique (dentes grandes) e Nicole (olhos fundos), Roberto e Marcelo (cortes de cabelo iguais e bolas de vôlei idênticas), eu preciso esperar mais quatro horas até que a garota da Haydée chegue, a garota, una e indivisa. O que posso fazer até lá? Acho que eu vou comprar um livro e ficar lendo, Ulysses em versão mangá, sim, Ulysses do James Joyce acabou de sair em mangá, nunca consegui ler aquela merda, quem sabe agora eu consiga. Esperar, esperar, esperar, esperar, esperar. Esperar é a pior coisa que tem.



.

OS RICOS E OS POBRES, Eduardo Haak

Fecho a janela e ponho na frente dela um colchão. O isolamento acústico não é perfeito, mas atenua um pouco os ruídos. Dois churrascos estão sendo feitos na vizinhança, num está tocando pancadão e no outro pagode. Os grupos aumentam o volume de tempos em tempos, alegando que o outro aumentou antes, a coisa acaba virando uma disputa entre cacofonia e distorção harmônica. Recosto-me na cama e abro o livro, Die Vernunftprinzipien der Natur und der Gnade, princípios da natureza e da graça fundados na razão. Tento ler uma página, duas, fecho, não está dando para me concentrar, hoje o barulho está pior que nos outros dias. Fico deitado, contando números em ordem decrescente até que a irritação passe.

 

Sou preto e pobre, mas tenho disciplina. Nunca gerei filho de bobeira (fiz vasectomia com dezenove anos), nem arruinei meus dentes ou fiquei gordo comendo porcarias açucaradas (coisa que pobre adora; aliás, a obesidade nas classes C e D já é um fato). Com pouco dinheiro é possível se alimentar bem no Brasil, vivo há quatro anos basicamente de uvas passas e amendoins, que são baratos e riquíssimos em nutrientes, flavonoides, antioxidantes, colesterol HDL, Sigmund Freud, Lucien Freud, Mark Rothko, mímesis práxeos, a imitação da ação segundo Aristóteles, aprendi muitas coisas quando namorei Paloma, uma garota rica cujos pais, professores universitários, achavam uma coisa progressista e politicamente correta a filha namorar um crioulo.

 

A família de Paloma tinha uma casa bacana com piscina e eu costumava passar os finais de semana lá. Nunca me impressionei com carros (outra mania de pobre), o que me chamava atenção no mundo de Paloma, além do modo silencioso como viviam, era a cortesia e o trato delicado entre as pessoas. Aqui nesse lugar se um motorista dá passagem a outro fica com fama de frouxo, tudo é barulhento, caótico, exasperado, açougues têm alto-falantes, pastores berram suas imprecações, kombis transitam anunciando material de limpeza, etc. Não é um ambiente propício para se ler Gottfried Leibniz, não é um ambiente propício para que qualidades humanas superiores floresçam, na verdade esse lugar é uma merda e nunca vai produzir algo diferente de merda, não adianta nada maestros famosos virem aqui dar aulas de graça achando que Haydn ou Mozart vão mudar a mentalidade dessa gente.

 

Caminho até a olaria abandonada, lugar onde tem algum silêncio. Leio durante uma hora até que perco a concentração por estar sexualmente excitado, não sei por que isso acontece, ler em alemão às vezes me deixa assim, um dia comentei isso com um amigo e ele disse, é que tu é crioulo e quando fala alemão deve imaginar que tá passando xaveco numa loirinha, há, há.

 

Levanto-me e vou andando e pensando em Paloma e em como nosso namoro acabou. Seria mais cômodo eu dizer que acabou porque acabou, namoros começam e terminam como qualquer outra coisa, filmes, músicas, partidas de futebol. Mas eu sei que Paloma tinha uma visão fetichizada de mim, no fundo ela esperava que eu fosse me comportar como um chefe tribal africano, que fosse fazer com ela na cama uma espécie de justiça histórica, arrombar o cu da branquinha caucasiana com minha piroca preta de vinte centímetros, etc. (Paloma dizia que J. M.Coetzee era um reaça.) Agora ela está em Berlim, estudando balé e provavelmente sendo enrabada por algum crioulo, algum refugiado nigeriano que trabalha como grafiteiro e DJ. Filho da puta.

 

Volto para casa e troco de roupa e penso nas opções que tenho, sei que esse tesão ensandecido não vai passar enquanto eu não der uma, die vernunftprinzipien der natur und der gnade, princípios da natureza e da graça fundados na razão, alemão é mesmo um língua tesuda da porra. Pego ônibus e metrô e decido saltar em alguma estação da zona oeste, Vila Madalena, Pinheiros, os ricos são afeitos a espaços privativos, jamais forçam alguém a testemunhar seus hábitos, já os pobres são agressivamente promíscuos, têm mania de churrasqueira e ouvem música a todo volume, livro de Jeremias, Deus dando uma de marido traído e furioso, comparando Israel a uma prostituta, eu tirei você daquele lugar e agora você me trai idolatrando Baal, etc., cruzo a Rua Wisard e vejo um grupo de garotas que eram amigas da Paloma, estabeleço contato visual e uma delas me reconhece e sorri, vou à mesa delas e depois vamos à exposição de uma artista plástica japonesa e depois a uma festa num apartamento na Vila Buarque, festa que se transforma numa orgia, um aglomerado de corpos nus que, ao contrário da língua alemã e sua prosódia, não me deixa excitado, uma das amigas da Paloma vem até mim, me beija e diz, eu quero ficar sozinha com você, respondo que moro longe e que ela vai ter de me levar para um lugar onde eu possa dormir.

 

Saímos e vamos para o apartamento dela, fique à vontade, ela diz, vou tomar banho. A amiga de Paloma é dessas falsas magras que vestidas não parecem ter curvas ou peitos grandes, ela fica de bruços e pede que eu me deite em cima dela, avalio que ela é tão gostosa quanto Paloma e então imagino que sou o canalha daquele crioulo nigeriano e que estou comendo a Paloma num apartamento na Oderberger Strasse.

 

Depois que terminamos conversamos um pouco e ela diz, bom, preciso dormir, levanto supercedo amanhã, se quiser pode ficar aqui no quarto, ou então, se preferir, o sofá da sala se transforma em cama, ali naquele armário tem travesseiro e edredom.

 

Fico um longo tempo na cama, sem sentir o menor prenúncio de que o sono vai chegar. Levanto-me e vou ao banheiro e decido bater uma, apesar de ter gozado duas vezes com a amiga da Paloma a coisa ainda não baixou, die vernunftprinzipien der natur, etc. Depois vou para a sala e deito-me no sofá. Estou com dor de cabeça e vejo na estante o que parece ser uma cesta com remédios. Levanto-me, vasculho seu conteúdo e encontro uma cartela de analgésico. O prazo de validade vence daqui a um mês, Paloma me contou que uma vez estava deprimida e que tomou uma caixa inteira de antidepressivo e que só não morreu porque o remédio estava vencido. Engulo um comprimido e fico ali, no sofá, esperando para ver o que acontece, esperando que a dor de cabeça passe, esperando que o sono venha, esperando que Paloma um dia volte e me procure, esperando que amanhã faça sol, esperando uma porrada de outras coisas, willst du hoffnung?, esperando, esperando, esperando, esperando, sempre esperando. Esperar é a pior desgraça que tem.



.

AR, Eduardo Haak

Diogo foi ameaçado pela ex-mulher, ou você arruma um trabalho e me ajuda com as despesas ou eu te boto na prisão.

 

Ela, que vem fazendo bicos como modelo, distribuindo folheto em estande de imobiliária, ganha tão mal que até parou de pagar o plano de saúde dela e do filho.

 

Provavelmente nenhum juiz mandaria prender um desempregado por não pagar pensão, mas Diogo decide que já está na hora mesmo de procurar alguma coisa, seu filho não pode ficar sem plano de saúde, aí acontece o que aconteceu com a menina do Valter, ela estava com meningite e na merda do hospital do governo disseram que era resfriado.

 

Diogo vai a uma agência e recebe duas ofertas de trabalho, uma para ser telemarketing e outra para ser coveiro, opta por ser coveiro, coveiro pelo menos não tem que ficar o dia todo num lugar fechado.

 

Faz os exames admissionais, etc.

 

O cemitério onde vai trabalhar é daqueles antigos, cheios de mausoléus e estátuas de anjos. Quem lhe ensina os procedimentos básicos de sepultamento e exumação é um sujeito chamado Nelson. Outra coisa que Diogo logo percebe é que aquele cemitério é cheio de gatos.

 

A mulher do Nelson, Clóris, vem quase todo dia dar ração para os animais. Ela explica que quem abandona gatos costuma escolher cemitérios para fazer isso.

 

Diogo e ela começam a conversar com frequência e um dia acabam entrando num mausoléu cujo portão não tem mais tranca e cujo sepultamento mais recente ocorreu em 1971. Na quinta ou sexta vez em que isso ocorre Diogo deixa de estranhar, fazer sexo ali não é muito diferente de fazer sexo num elevador.

 

Num final de tarde Nelson chama Diogo para ajudá-lo a preparar uma sepultura, ele diz, vai haver um enterro amanhã às dez, preciso fazer isso agora, amanhã só venho trabalhar depois do almoço. A caminho da sepultura, no setor mais antigo e afastado do cemitério, Nelson bate com um pé de cabra na nuca de Diogo.

 

Quando recobra a consciência, a primeira coisa que Diogo percebe é um barulho oco e abafado de madeira atritando com cimento e a segunda coisa que percebe é que não consegue se mexer.

 

Então abre os olhos e vê Nelson olhando para ele através de uma pequena janela circunscrita a seu rosto. Nelson sorri malignamente, cospe no vidro e tampa a janela, atarraxando sobre ela um plástico escuro com o desenho de um crucifixo.

 

Enquanto busca atenuar a aflição mantendo o corpo inerte e os olhos fechados, dada a escuridão e o espaço exíguo, Diogo pensa que o oxigênio dentro do caixão termina rápido, que a pessoa mal percebe e logo fica inconsciente, que ser enterrado vivo, portanto, não é a pior forma de morrer.



.

VESTIDO DE NOIVA, Eduardo Haak

Dona Lígia é professora de matemática no curso supletivo.
Ela diz a Pedro, um aluno, vou te apresentar minhas filhas, acho que você vai gostar delas, já pensou, eu com um genro bonitão assim?, há, há. Pedro, que tem vinte anos, está começando a carreira de modelo e divide com colegas um apartamento na região central, perto da Praça da República.

 

Vir para São Paulo era seu objetivo desde pequeno. Mas as coisas aqui têm sido mais difíceis do que ele supunha, o custo de vida é alto e os trabalhos são escassos para quem está começando na profissão. Arranjar uma namorada que seja de boa família e consequentemente ter uma casa onde poderá almoçar e jantar de graça pode ser o que Pedro chama de mão na roda.

 

As filhas de dona Lígia, Alaíde e Lúcia, têm dezenove anos e são gêmeas desiguais. Sendo Lúcia a mais bonita, é ela que é apresentada pela mãe, Lucinha, esse é Pedro, um aluno meu, hoje ele vai de carona conosco. Lúcia acha Pedro simpático, então eles se adicionam, começam a conversar e em pouco tempo estão namorando.

 

Alaíde, a irmã gêmea de Lúcia, corta um tecido no ateliê da faculdade e sente vontade de fumar.
Ela é estudante de moda e o trabalho que está fazendo se chama vestido de noiva: a desconstrução, no qual funde o conceito de vestido de noiva tradicional com elementos da Vivienne Westwood, a estilista inglesa que inventou o visual punk no século passado. Como sempre, usará a irmã, Lúcia, que é bonita e esguia, para provar a roupa e tirar as fotos.
Larga a tesoura sobre a mesa, se levanta e sai do prédio da faculdade. Vê que o céu está carregado e que não demorará muito para chover. Depender de ônibus num dia desses quase faz Alaíde reconsiderar a decisão de não dirigir. Acende o cigarro e fica parada na calçada, fumando. Um carro para no semáforo e Alaíde sem querer vê sua imagem refletida no vidro. Observar-se lhe dá sempre uma sensação desalentadora. Por que não nasceu bonita como a irmã?

 

O fato de ter quase vinte anos e ainda não ter tido nenhum tipo de vivência sexual exceto as que tem consigo mesma é algo que faz Alaíde se sentir infantilizada e ridícula. Talvez por isso tudo sempre colocou apelidos nos namorados da irmã – Alucinação era o menino maconheiro da escola, Memória, o nerd superdotado, Realidade foi o primeiro namorado pra valer de Lúcia, estagiário do escritório de advocacia do pai. Agora é a vez desse sujeitinho metido a modelo. Alaíde ainda não escolheu seu apelido.

 

Estelionato?

 

Alaíde faz vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três anos. Já formada, não consegue emprego na área de moda e se vira dando aulas de inglês pela internet.

 

Sem que ninguém saiba, continua virgem.

 

Estelionato (que se tornou ator e vem fazendo algum sucesso na TV) e Lúcia decidem se casar. Lúcia, para ajudar a irmã, encomenda a ela o vestido de noiva, ei, mas não vá inventar moda, hem?, não quero nada autoral, extravagante, quero um vestido de noiva comum, bonito e comum.

 

Alaíde faz um vestido que supõe ser tradicional, mas na prova a irmã diz, não, não, não é nada disso, não foi isso que eu pedi, você precisa parar com essa mania de querer ser artista, Alaíde, aliás, todos seus problemas se originam aí, eu sou incomum, eu sou diferente, desculpa, mas você vai ter que refazer, ou vou passar o trabalho para outra costureira.

 

Humildemente Alaíde faz outro vestido, copiado de uma revista americana. Enquanto o executa a palavra costureira lhe vem à mente, sim, quando eu me apresento às pessoas digo que sou estilista, mas na verdade o que eu sou mesmo é costureira. Lúcia acha o vestido simplesmente maravilhoso, viu só como você é capaz de fazer coisas de qualidade? Você podia estar rica, Alaíde, com o talento que você tem. É só querer, sabe?, pra nossa vida ir pra frente é só a gente ser mais ou menos como todo mundo, é só a gente pensar mais ou menos como todo mundo pensa.

 

Alaíde acorda com uma frase na cabeça, não há fracasso pior do que o sucesso errado.

 

Hoje é o dia do casamento de Lúcia. O vestido está no quarto de Alaíde, há alguns últimos ajustes a ser feitos.

 

Ela tira o vestido do suporte, o leva ao banheiro e o joga na banheira. Despeja uma garrafa de álcool e risca um fósforo. Depois, recolhe os restos carbonizados de tecido e os joga no cesto de lixo, junto com os papéis com restos de merda raspados do cu de dona Lígia, seu Gastão, Lúcia, talvez até do Estelionato.

 

Volta ao quarto, abre a porta do armário e se olha num espelho de corpo inteiro. Fazia cinco meses que não via a própria imagem, inclusive tendo aprendido a escovar os dentes às cegas.

 

Alaíde se enxerga, agora, como nunca se enxergou antes.



.

DEMISSÕES, Eduardo Haak

Estou na praça de alimentação do shopping, almoçando. Observo um funcionário trepado numa escada, pondo um enfeite de Natal na parede. Ao esticar um dos fios, ele leva um choque elétrico na mão. Afasta-se do enfeite de modo abrupto, sacudindo a mão, depois fica olhando para ela. O sujeito vê que o observo, então termino de comer, me levanto e vou despejar os restos da bandeja num dos cestos de lixo. Desço um andar, vou caminhando por um corredor e passo por uma loja que mostra na vitrine vários aparelhos de TV. Todos estão sintonizados num mesmo programa e as imagens que surgem nas telas parecem estar levemente dessincronizadas, como se houvesse um pequeno atraso entre a aparição de uma imagem numa tela e noutra. As telas mostram, agora, um carro cuja placa tem as letras VLT, volt, voltagem.

 

Lembro-me de uma notícia que li outro dia, que nos presídios americanos muitos condenados à morte têm preferido a execução na cadeira elétrica em vez da injeção letal, que em várias ocasiões falhou por falta de um dos componentes químicos, o que deixou os condenados agonizando por um tempo terrivelmente longo, sendo que um deles até sobreviveu à injeção. Agonizar, do grego agón.

 

Tenho uma empresa com dezoito funcionários e hoje estou sentindo a agonia da escolha, pois tenho que demitir alguém. A firma está no prejuízo, mesmo com o incentivo fiscal que tenho, mesmo com a contenção de gastos que venho fazendo há meses. A coisa realmente chegou no limite e agora só fazendo corte de pessoal. Estou entre dois funcionários, os dois são equivalentes, ambos trabalham direitinho, não faltam ou atrasam, nunca vieram trabalhar bêbados. Nenhum dos dois é especialmente qualificado, embora isso não seja um problema, as coisas que eu fabrico não exigem grande habilidade técnica ou especialização de mão-de-obra. Posso dizer que tenho uma relação razoavelmente cordial com ambos. Qual deles, então, eu vou demitir?

 

Não tem como se demitir alguém de forma descontraída, por exemplo, chamo o funcionário à minha sala, ponho uma máscara de presidente americano e digo a ele, tchau, tigrão, você tá fora, demitir é sempre tenso, o funcionário sempre se sente injustiçado, por mais que você explique racionalmente a situação, ele, o funcionário demitido, sempre te vê como um sacana filho da puta. Meu pai era gerente numa multinacional e uma vez levou um soco ao mandar embora um vendedor. O sujeito acabou sendo demitido por justa causa, por conta da agressão, e então jurou que ia dar um tiro no meu pai. Outra vez um outro funcionário que meu pai fora incumbido de demitir teve um descontrole emocional e defecou nas calças enquanto implorava, de joelhos, que meu pai não fizesse aquilo, que os filhos dele não iam ter o que comer, etc. Não sei qual seria a reação dos meus dois funcionários, de um e de outro, ao me ouvir falar em demissão. O são-paulino parece ser um sujeito tranquilo, o palmeirense também parece, razoavelmente tranquilo, ambos são evangélicos, ambos são pais de uma porrada de filhos, ambos têm por volta de quarenta anos, ambos teriam, sem dúvida alguma, bastante dificuldade para arranjar outro emprego.

 

Desço dois lances de escada rolante, compro uma lata de pastilhas Altoids e coloco duas na boca de uma só vez. Atendo uma ligação da minha mulher. Ela diz que o carro continua com aquele barulho na suspensão; diz que está com receio de usá-lo; diz que tem que levar a mãe hoje à tarde àquele posto do INSS naquele lugar horrível cheio de viciados em crack; diz que seria um pesadelo se o carro acabasse quebrando justamente lá; diz, portanto, que vai levar a velha de Uber. Entro na fila para pagar o cartão do estacionamento, desço mais dois andares, dessa vez de escada normal, e entro na garagem do shopping. Vou caminhando até o setor H5 e vejo ao lado do meu carro um carro com a placa IOS, Iosif Djugashvili. O primeiro presente que Magali, minha mulher, me deu quando começamos a namorar foi a biografia do Josef Stalin. (Os Gulags, os prisioneiros praticando canibalismo para saciar a fome, etc.) Entro no meu carro, cuja placa é JCN, Jacinto, Jaçanã. Abro o porta-luvas, pensando, e aí, o palmeirense ou o são-paulino?

 

Tanto um quanto o outro tem uma ficha criminal extensa. O são-paulino cumpriu pena por roubo, extorsão e homicídio, o palmeirense foi condenado por tráfico de drogas, sequestro e também homicídio. Admiti ambos por causa do incentivo fiscal, o governo está dando um bom abatimento nos impostos para quem contrata funcionários que tenham cumprido pena de prisão, a reinserção na sociedade, a chance de um novo começo, etc. Tiro do porta-luvas minha pistola, uma Jericho, israelense, calibre nove milímetros. Observo seu pente e finalmente decido de qual dos funcionários eu vou me livrar.
Meu pai levou um soco daquele vendedor esquentadinho, mas eu levaria um tiro, ou do são-paulino ou do palmeirense, de quem eu demitisse, esses caras não levam desaforo pra casa, essa é a mentalidade deles, não engolir desaforo, portanto vou matar antes. O risco de eu ser incriminado por homicídio é praticamente nulo, bandido que aparece morto é a coisa mais comum que tem. Sim, bandido, não existe ex-bandido, o sujeito vira evangélico, mas isso não significa nada, o sujeito faz mais um filho, o sexto ou sétimo, em sua nova mulher, a quarta ou quinta, e fica falando que se tornou um varão de Deus, mas isso também não quer dizer coisa alguma. Das dezoito pessoas que trabalham para mim, treze são ex-presidiários.

 

Às vezes penso em pôr fogo na fábrica com todo mundo dentro.



.

GLOTE, Eduardo Haak

Rolf percebe que o pão com rosbife ficou parado na glote e se levanta abruptamente do sofá.

 

Tenta engolir, mas não consegue, também não consegue expelir, então bate nas próprias costas, sentindo a pulsação cardíaca latejar nas têmporas.

 

Pensa quantos minutos levaria para chegar ao pronto-socorro e olha no smartphone o ícone do aplicativo de táxi e conclui que não, que não vai dar.

 

A glote obstruída, se eu desmaiar agora, Rolf está sozinho em seu apartamento, de que adianta eu namorar Mônica e namorar Magali e sair com Fiorella se.

 

Asfixia mecânica.

 

Rolf cogita correr para a cozinha, talvez ingerir algum líquido, ou botar o dedo na garganta.

 

Vem à sua mente aquele filme que o computador diz, sinto minha mente se esvaindo, stop david, tenho medo, e depois vem à sua mente a prece ave-maria, cheia de graça, senhor é convosco, convescote, Rolf não consegue respirar e pensa, morrer asfixiado não, então corre até a sacada do apartamento e se joga do quarto andar e seu corpo bate no toldo de lona da entrada do prédio e o impacto faz o pedaço de pão com rosbife ser expelido da glote e Rolf, sem qualquer luxação ou fratura, enfim traga para os pulmões uma longa lufada de ar.



.

CONVITE AO PRAZER, Eduardo Haak

Marcela me deixou um recado na rede social, eu quero te ver hoje.

 

Olho as fotos dela, a mulher quando não é muito bonita aparece nas fotos fazendo sempre a mesma pose facial caricatural, Marcela entretanto expõe o rosto com a franqueza das mulheres que sabem, que são bonitas e, fotogênicas.

 

Eu, que me chamo Judas Biglione, falo fazendo essas, pausas, isso irritava minha ex-mulher, ela dizia que eu parecia um, retardado falando assim, ponto.

 

Fiz clareamento dentário em Marcela, ela preencheu a ficha de dados pessoais dizendo estado civil casada, nunca mais tive qualquer coisa com mulher comprometida desde que fui mantido doze horas em cárcere privado num apartamento no qual só havia dois objetos, um alicate de castração e um livro do Isaac Babel, um escritor judeu ucraniano que se meteu a comer a mulher do chefe da polícia secreta soviética e acabou fuzilado.

 

Dou uma de desentendido e respondo perguntando se Marcela está com algum problema nos dentes.

 

Ela escreve, isso, aquele implante que eu te disse que está meio alto, acho que precisa dar uma lixadinha, vou estar perto do seu consultório no final da tarde, tem como me encaixar, ponto de interrogação.

 

Não me lembro de Marcela ter falado em implante. Ela, que é casada com um bicheiro, poderia ir a esses dentistas que cobram uma fortuna e que têm consultórios nesses prediões com fachada espelhada que dá pra ver das janelas o Parque do Ibirapuera inteiro, mas por alguma razão ela resolveu cismar logo comigo.
Vou até a mesa da minha secretária e pergunto como está a agenda hoje, ela fala o nome dos pacientes e os horários, digo para desmarcar todos a partir das dezesseis horas, a senhora pode ir embora mais cedo, dona Viviane, vou receber meu contador, estou com umas dúvidas sobre o imposto de renda.

 

Viviane diz, o.k., quer que eu remarque as consultas, ponto de interrogação.

 

Sim, pode remarcar, respondo.

 

Viviane tem um português impecável, usa o presente do subjuntivo, remarque, odeio aquelas pessoas que dizem, quer que eu remarco?, sua foto na rede social é de quando ela era quinze anos mais jovem e trinta quilos mais magra, as melhores secretárias são assim, gordas e velhas, já tive secretárias jovens e bonitas e só tive problemas.

 

Atendo três pacientes e finalmente fico sozinho.
Meu consultório fica numa sobreloja, Dr. J. Biglione, Cirurgião Dentista, uso a abreviação jota, Judas é um nome nefasto, uma vez vi na TV um programa sobre dois irmãos que tinham sido batizados pelos pais de Calígula e Hitler, ponto. Venho sentindo uns cheiros estranhos aqui no consultório, parece meio cheiro de produto químico, aqui embaixo tem um restaurante, um desses restaurantes furrecas que servem almoço comercial, tudo aqui está caindo aos pedaços, vencendo o contrato vou procurar um lugar melhor, eu tive de apertar o cinto por causa do meu divórcio, a coisa entrou em litígio e eu me estrepei, perdi apartamento, carro, etc.

 

O interfone soa, destravo a porta.

 

Marcela sobe a escada e vejo que ela está com uma blusa transparente, dizem que o marido da Marcela, o tal bicheiro, uma vez obrigou um cara a tomar laxativo e então botou o sujeito numa daquelas cadeirinhas do teleférico de São Vicente, tudo isso só porque o sujeito disse bom-dia pra Marcela, Marcela e sua blusa transparente e seu sutiã preto e seu pescoço longo modiglianesco e sua calça também meio transparente, mulher quando quer ser sacana não tem pra ninguém, fodam-se alicate de castração, cárcere privado, Isaac Babel.

 

Conduzo-a à sala de atendimento e pergunto, qual dente você está sentindo que está alto, ponto de interrogação.

 

Ela diz, eu examino, é, está um pouco saliente mesmo.

 

Pego a broca e desgasto a superfície, depois faço o teste de mordedura, acho que agora está o.k.

 

Marcela então me agarra e me dá um beijo na boca.

 

Tiramos as roupas e ajusto a cadeira numa posição para facilitar, ponho a camisinha e entro em Marcela.

 

Estou quase gozando e sinto o consultório tremer, uma explosão, sim, as luzes se apagam e uma parte do teto desaba sobre nós, vazamento de gás no restaurante, aqueles cheiros esquisitos todos que eu vinha sentindo, etc., uma viga de madeira nos imobiliza, eu e Marcela, nus, na posição de cópula. Os bombeiros chegam e começam a trabalhar e apesar da seriedade deles a situação é cômica e sei que a imprensa vai noticiar tudo de modo sensacionalista e o marido de Marcela vai saber e eu penso na história do cara que cagou nas calças no teleférico de São Vicente só porque deu bom-dia a Marcela e eu noto que não estou sentindo minhas pernas, devo ter tido alguma fratura na coluna vertebral, sim, devo estar paralítico e agora vou ter que andar de cadeira de rodas pro resto da vida e o marido da Marcela um dia vai me pegar e vai me amarrar na cadeira e aí vai me levar até a beira de uma piscina e aí ele vai dizer, ô Iscariotes, agora tu vai brincar de corrida de cadeira de rodas subaquática, e aí ele vai me empurrar na piscina e eu vou ficar lá, glub, glub, glub, submerso, e minha vida toda vai passar diante de meus olhos como se fosse um filme, um filme, fodam-se Isaac Babel, cárcere privado, alicate de castração.



.

CABEÇA, TRONCO E MEMBROS, Eduardo Haak

Ao despertar, a primeira coisa que Joan percebe é que Neide não está na cama e a segunda coisa que percebe são as costas doendo. Tenta erguer o tronco dobrando e impulsionando as pernas, mas acaba por se levantar de lado, de modo cauteloso. Os ponteiros do relógio informam que o dia ainda está razoavelmente abastecido de minutos a serem gastos, a TV mostra um retângulo no qual está escrito sem sinal, então Joan vai até o cabide onde seu casaco está pendurado e pega um anti-inflamatório. Já é a terceira vez na semana que toma esse tipo de medicamento, ele sabe que tem de parar, o abuso de anti-inflamatórios está relacionado à falência dos rins, outra coisa que Joan sempre diz que nunca mais vai fazer, mas sempre acaba fazendo, é dormir em hotéis com mulheres semidesconhecidas.

 

Pega no frigobar uma garrafa de água e engole o comprimido, depois vai até a janela e fica desenhando no vidro embaçado, um retângulo, uma elipse, um número nove. O ar-condicionado foi regulado para que ele e a tal mulher que lhe foi apresentada pela irmã pudessem ficar sem roupas e sem cobertores. O frio nesse ano está intenso, a previsão era de que a temperatura nessa madrugada fosse chegar a zero grau. Você vai gostar da Neide, ela é bonita e tem um tremendo senso de humor, foi assim que a irmã de Joan disse. Ele respondeu que nem a mulher mais espetacular do mundo seria capaz de redimir um nome horrível como Neide, e que senso de humor em geral nada mais é do que um salvo-conduto para as pessoas se comportarem abusivamente. A despeito disso, Joan acabou indo se encontrar com a Neide.

 

A necessidade de escovar os dentes leva Joan ao banheiro. Ao abrir a porta imediatamente ele vê, atrás do vidro fosco do box, o contorno de um corpo feminino, vestido, pendurado pelo pescoço com um cinto. Um corpo enforcado. Joan recua em pânico e sai do aparamento. Desce até o lobby do hotel e observa uma butique sendo montada, vitrine, manequins, caixas de papelão. Pensa, e se suspeitarem de mim por algum motivo? Neide. Tremendo senso de humor. Etc. Nunca dá pra saber o que vai pelo íntimo de ninguém, sobretudo essas pessoas que têm um tremendo senso de humor. Joan decide telefonar para a ex-mulher, o atual namorado dela é criminalista, mas a chamada cai na caixa postal e ele decide não deixar recado. Toma o elevador de novo e volta ao apartamento. Alguma decisão precisa ser tomada, se demorar mais um pouco seu comportamento de fato parecerá suspeito.

 

Decide procurar algum bilhete que Neide possa ter deixado e, sentindo horror e repulsa, abre a porta do banheiro e empurra o vidro do box. O cadáver está de costas para ele, com roupas exageradamente grandes que não deixam nenhum trecho da pele visível, inclusive as mãos. Joan o toca e sua expectativa é contrariada ao sentir a rigidez artificial do conjunto formado por cabeça, tronco e membros, conjunto também inesperadamente leve. Na superfície plástica do rosto está escrito com caneta marca texto, enganei o bobo, há, há, e num dos bolsos das roupas exageradamente grandes Joan encontra uma carta: Juan, mi amore, esqueci de avisar que eu tinha dermatologista hoje cedo, então saí e deixei você nanando. Mas antes resolvi fazer essa brincadeirinha contigo, pedi um manequim emprestado numa loja que estão montando lá embaixo e, voilá!  Espero que você não fique bravinho. Quando descer para fazer o check out devolve o manequim, tá? Mille baci, mille baisers, mil beijos.



.

EGOÍSMO, Eduardo Haak

Fiz aniversário e minha namorada me deu um vale-caricatura, um artista inventou esse negócio, você chega ao ateliê com o vale e ele te caricaturiza.

 

Ir até o Ipiranga em troca de um desenho?, pensei, mas acabei ficando curioso.

 

Meu pai dizia que mesmo as pessoas que dizem não ser curiosas sempre têm curiosidade sobre si, especialmente a respeito de como os outros as veem.

 

Nunca ninguém havia feito minha caricatura.

 

O artista me recebeu, firmeza aí?, só me dá dez minutinhos que estou terminando um job.

 

Esperei folheando uma Veja, então ele me chamou e pediu para eu me sentar num banco amarelo, de plástico.

 

Enquanto me desenhava fiquei tentando me lembrar com quem ele se parecia, até que consegui, era um ator antigo da TV, um que às vezes trabalhava nos Trapalhões.

 

Sabe como descobri esse meu capacitamento artístico, sir?

 

Não, respondi.

 

Foi na Santa Marcelina. Fiz um ano de pussyland, depois o dinheiro extinguiu-se, como os dinossauros, e as freirinhas não me deixaram fazer rematrícula enquanto os débitos não fossem quitados. Vê de pode. Aí existia uma colega, a Jussara, feia de corpo, bonita de cara, que decidiu me dar uma força e pagou por uns rabiscos que fiz dela. O caso é de taquicardia, tum-tum-tum, mas ninguém, ninguém mesmo desenhava porra alguma lá na facul das freirinhas mercenárias de cristo. Aí, no mouth a mouth e graças à vaidade e a concupiscência das mulheres, meus desenhos caricaturais foram ficando muito famosos. Eis o vosso aqui, sir.

 

Ele me estendeu um papel.

 

Gostei do desenho, apesar de minhas orelhas terem sido ressaltadas de modo exagerado, mesmo para uma caricatura.

 

Voltei para casa pensando em como Regina teve a ideia de me dar um presente como aquele.

 

Ela deve ter ouvido falar de um artista que estava à beira da mendicância e sentiu pena dele. Outro dia ela fez uma reunião em casa para que uma amiga desempregada vendesse perfumes.

 

Regina é jogadora de vôlei e tem uma fragilidade num dos joelhos que logo a fará parar de jogar.
Quando isso acontecer, provavelmente ela voltará a morar com os pais, em Jundiaí. Talvez se especialize em fisioterapia e, com alguma sorte, talvez até consiga arranjar emprego num spa.

 

Talvez o momento de eu chutar Regina da minha vida tenha chegado. Talvez eu devesse arranjar uma mulher nova, de quem eu possa me alimentar do vigor da juventude. Velhice é um troço mais contagioso que aids.

 

As mulheres acusam os homens de egoísmo, mas quando um homem abranda o egoísmo elas perdem a capacidade de adoração, passam a sentir ternura e piedade, e isso quer dizer desinvestimento libidinal, africa addio, the end.

 

Fui para o Dive.

 

Sempre achei aquele neon amarelo numa parede de tijolos, great times are coming, um vaticínio.

 

Lá estava Gabriela, sentada num sofá, de pernas cruzadas, guardiã do próprio limiar contra homens indecisos e fracos, olá.

 

(Olá é uma espécie de tiro de meta que cobramos no campo da sedução.)

 

Saímos do Dive e fomos a um motel. Sempre que vou para a cama com uma mulher pela primeira vez tenho uma sensação de ventania.

 

Voltei para casa, dormi por onze horas e acordei, não sei por que, pensando na caricatura.

 

Fui pegá-la, observei-a e então tudo ficou claro.
Tum-tum-tum, taquicardia.

 

Gabriela, 1993, guardiã do próprio limiar, não poderia salvar Gustavo, 1975, do que aquele desenho representava, Rogério Ceni errando pênaltis, Daniel Craig errando tiros, Regina errando saques.

 

Sim, aquele desenho me deu uma certeza bruta de que não era mais o jovem que supunha ser.

 

Como um desenho pode ser tão revelador?

 

Tomei banho, fui tomar café no Le Pain Quotidien, telefonei para Regina e caiu na caixa postal, liguei de novo e caiu de novo na caixa postal, eu estava começado a me sentir desesperado e precisava dizer imediatamente a Regina que a gente precisava se casar e que eu a amava mais do que todas as coisas. Eu não sabia que envelhecer é tão súbito, que é como estar num desses calmos exercícios de evacuação feitos pela brigada de incêndio e de repente se ver em pânico ante uma combustão real e fora de controle.



.

FILME BRASILEIRO, Eduardo Haak

Está passando um filme brasileiro na TV. O filme é antigo, sua imagem é fosca, com excesso de granulação, etc. Você não reconhece o ator em cena, que usa um paletó xadrez e uma calça de tergal lilás. São duas e catorze e você vai à cozinha fazer café.

 

Talvez porque esse filme brasileiro, feito em 1977, seja uma espécie de ruína, daí que não faça diferença deixar de ver duas ou três cenas (toda ruína é descontínua), você fica na cozinha esperando a água esquentar. Você abre o armário, pega a lata de café e descobre que o pó acabou. Então desliga o fogão, despeja a água na pia e a dilatação repentina do aço provoca um barulho, blam.

 

De volta à sala, você se deita no sofá. Você se sente relaxado, distendido. Ou não? Talvez o que você esteja sentindo seja aquela agradável indiferença que ainda não degenerou em tédio. Ou aquela sensação de estabilidade que dá quando você se livra de um aperto. Ou aquele senso de autossuficiência que ocorre quando você deixa de sentir curiosidade por algo ou por alguém.

 

O filme agora mostra o sujeito da calça lilás deitando-se com uma mulher de penhoar ao som de uma daquelas músicas clássicas feitas com sintetizador, hooked on classics.

 

Seu telefone faz barulho, é a mulher-nascida-em-1968-mas-que-ainda-está-gostosa perguntando se você está acordado. Você digita a resposta, estou. Ela escreve, então vem tomar um café comigo, saí do plantão agora, dei uma parada naquela padaria. Você pensa no que provavelmente vai acontecer se for encontrá-la: vocês irão para o apartamento dela, etc.

 

Além da 1968, pode-se dizer que atualmente você tem situações ativas com a advogada-presbiteriana-nascida-em-1985-que-quer-se-casar; com a o.k.-você-venceu-batata-frita-nascida-em-1982; com a Tom-Cruise-nascida-em-1990. Mas sua relação com a 1968 é especial. Talvez porque vocês sejam feitos do mesmo tipo de matéria, das mesmas angústias e ausências, da mesma urgência não declarada. O declínio é parte constitutiva de vocês dois: das pessoas nascidas em 1971, 94,7% ainda estão vivas; das de 1970, 93,2%; de 1969, 92,6%; de 1968, 92,1%.

 

Você pega a chave da moto, o capacete e sobe até o Sumaré. O lugar onde a 1968 está te esperando fica ao lado daquele prédio que não é mais da MTV.

 

Essa região sempre faz você pensar numa comissária de bordo que você namorou quando tinha vinte anos. Ela, que era bem mais velha que você, costumava ficar furiosa porque você sempre trocava as pilhas gastas de seu walkman pelas pilhas novas dos controles remotos dela.

 

Você entra no restaurante e logo vê 1968-que ainda-está-gostosa sentada a uma mesa. Você anda até ela, a beija e diz, e-aí-como-está, sem fazer inflexão de pergunta. Você pede um café e uma água. Enquanto 1968 vai ao banheiro você observa dois sujeitos, não muito mais velhos que você, mas já bastante desgastados. O que está pior usa um corte de cabelo que não se sustenta mais por causa da escassez de fios, o que dá ao conjunto cabeça-cabelos uma impressão de incongruência. O outro, cujo cabelo também está ruim, com uma opacidade causada por excesso de tintura ou loção, ri e diz, gostou, hem? Eu também tenho minhas boas ideias.

 

Você e a 1968 saem do restaurante e descem até a Rua Iperoig. Ela mora num prédio de três andares, antigo, sem elevador. Enquanto você sobe a escada atrás dela, você pensa que talvez vocês sejam um para o outro algo como fantasmas com cuja aparição podem contar. Você sempre gostou de coisas ambíguas, fronteiriças entre o existente e o não existente. Você sempre gostou de pensar em si mesmo como uma assombração.

 

Há isotônico de tangerina na geladeira de 1968 e você pega um. Ela vem do quarto com uma toalha pendurada no ombro e diz, fica à vontade, vou tomar um banho.

 

Mas antes de ir para o banheiro 1968 se senta no braço do sofá e diz, olha, Edu, tem uma coisa que eu preciso te dizer. Eu acho que é a última vez que a gente vai ter um encontro com essas... características.

 

Características, você repete, com inflexão de pergunta.

 

Eu estou me relacionando. É um homem mais velho que a princípio eu achei que não ia dar em nada. Mas acho que eu estou começando a gostar mesmo dele.

 

Você dá um gole no isotônico. Das pessoas que nasceram em 1967, 91,6% ainda estão vivas. Das de 1966, 90,2%. De 1965, 88,4%.

 

É isso. A lógica das coisas entre nós foi sempre mais ou menos essa, não?, ela diz.

 

Você não tem muita certeza sobre o que ela quer dizer, mas como não ter muita certeza sobre o que Mariana quer dizer sempre fez parte da lógica desse namoro-fantasma de vocês, você se limita a dizer, realmente.

 

Mariana se levanta, vai ao banheiro e tranca a porta. É a primeira vez que você a ouve trancar a porta para tomar banho.



.

INCESTO, Eduardo Haak

Meu pai quando jovem declarou ter feito sexo com a própria mãe.

 

A entrevista saiu num jornal de grande tiragem, o que fez dele uma das personalidades públicas mais discutidas da época. Ele era então o Nono, vocalista e líder da banda pós-punk Os Numerais.

 

Embora eu já fosse nascido, não tenho lembranças dele assim, tocando, com o cabelo laranja, etc. Os Numerais acabaram em 1990, depois ele formou outra banda, Henrique e os Cimentos Ilícitos, mas esse segundo grupo não teve sucesso nenhum.

 

Conheci a história do incesto aos doze anos, mais ou menos na época em que voltamos a conviver. Meu pai passou anos se tratando, dependência química, surtos psicóticos, etc. Morei com meus avós, pais dele, durante esse tempo todo.

 

Aliás, fui registrado como filho natural de meus avós, por razões que não vêm ao caso aqui.

 

Estou agora no escritório do doutor Hermógenes, advogado especialista em direito de família e sucessões. Como meu pai é interditado judicialmente e sou seu tutor, todos procedimentos burocráticos relativos à execução do testamento de minha avó correram por minha conta. Ela morreu em agosto, sendo eu e meu pai – legalmente meu irmão – seus únicos herdeiros.

 

Observo, por uma das janelas da recepção, um sujeito que conversa com um dos manobristas do escritório. Ele tem uns quarenta anos e, embora esteja usando um terno de boa qualidade e no geral tenha uma boa aparência, há algo nele que me faz pensar nessas pessoas que de um dia para o outro aparecem pilotando as SUVs da prosperidade súbita e suspeita.

 

Senhor Jonas Negri Filho?

 

Olho na direção da voz, que é da secretária do doutor Hermógenes. Ela me sorri e diz para acompanhá-la.

 

Sou levado à sala do causídico, que me cumprimenta e indica a cadeira onde me sento.
Foi ele, Hermógenes, quem leu há algumas semanas o codicilo de minha avó: eu, Senhorinha Pola Negri, de posse do meu perfeito juízo e livre de qualquer coação, pelo presente instrumento exaro minha última vontade, para determinar o seguinte, dois pontos. O constrangimento com a leitura daquela terrível peça testamentária envolvendo nomes próprios e destinações de objetos pessoais de pouco valor foi contornado por Hermógenes com tato e elegância, ao contrário das testemunhas, que reagiram com um silêncio excitado, ignóbil, cruel.

 

Hermógenes me estende um envelope e diz, está tudo aí dentro, em todo caso confira, se assim desejar. Sua mesa é coberta por um vidro sob o qual há fotos de crianças, adultos, noras, genros, filhos, netos. Hermógenes é um velhão solene que usa abotoaduras e cujo cabelo é tão rígido que dá a impressão de que quebrará se for tocado. Hermógenes é uma trepada ocorrida em 1953 que se locomove e fala, ambulare et loqui.
Estive pensando, sabe?, ele diz, pressionando um lápis com uma guilhotina de cortar charuto.

 

Fico olhando para ele, esperando o que vai dizer.
Eu leio a bíblia, sabe?, todo dia, desde os meus longínquos vinte e dois anos. E não me canso de admirar aquelas genealogias.

 

Hermógenes empunha o conjunto lápis-guilhotina como se fosse uma arma, um revólver que estivesse contemplando antes de levá-lo à têmpora.

 

É, aquelas genealogias. Adão gerou Sete, que gerou Enos, que gerou Cainã, que gerou Maalaleel, que gerou Jerede, que gerou Enoque, que gerou Matusalém, que gerou Lameque, que gerou Noé, que gerou Sem, Cão e Jafé.

 

Ele deixa de torturar o lápis, deixando-o cair sobre a mesa, e diz, bem, bem, muito bem. Talvez você esteja querendo saber aonde quero chegar com isso tudo.

 

Faço um gesto que talvez signifique sim-estou-muito-curioso-etc.

 

Pois bem. O que eu quero dizer é que no fundo não há, entende?, não há separações. Não existe o nós e o vocês. Somos todos... figurinhas do mesmo álbum.

 

Despeço-me dele com um aperto de mão. Saio de sua sala e atravesso a recepção, onde a recepcionista está tendo uma conversa blandiciosa com aquele sujeitinho da SUV e do terno invocado.

 

Chego à rua.

 

Respiro fundo algumas vezes, tiro do bolso meus óculos de sol, limpo as lentes na barra da camisa. Pego o telefone para chamar um táxi, mas antes decido caminhar um pouco.

 

Talvez eu vá até onde ficava nossa antiga casa, outro dia vi pelo google street view que ela foi demolida. Desde 2003 não passava por essa região.

 

Ainda temos alguns parentes aqui. Nossa família é cheia de epiléticos, esquizofrênicos, oligofrênicos, meu pai não foi o primeiro caso de loucura. Acho que é por isso que minha mãe-avó sempre foi tão preocupada comigo, tão atenta a qualquer oscilação de humor que eu tivesse.

 

Chamo o táxi e decido ir para a Paulista. Desço do carro e ando até um hotel que sei que tem uma tabacaria, onde compro uma guilhotina de cortar ponta de charuto. Trata-se de um objeto de dez centímetros que tem no centro um orifício por onde se deslocam duas lâminas, em sentidos opostos. As lâminas são acionadas por um disparador e são mantidas em suspenso por uma trava. Vou ao banheiro ali do lobby, entro numa das cabines e desço as calças. Penetro meu pênis no orifício da guilhotina, orifício que é mais largo que o da peça do Hermógenes, o advogado. Fecho as calças e saio da cabine e caminho na direção do espelho. Não me esquivo do olhar que a imagem refletida fixa em mim, um olhar mau, cossanguineo, cortante.



.

APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta) eduardo haak, 2018 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)