Ao despertar, a primeira coisa que Joan percebe é que Neide não está na cama e a segunda coisa que percebe são as costas doendo. Tenta erguer o tronco dobrando e impulsionando as pernas, mas acaba por se levantar de lado, de modo cauteloso. Os ponteiros do relógio informam que o dia ainda está razoavelmente abastecido de minutos a serem gastos, a TV mostra um retângulo no qual está escrito sem sinal, então Joan vai até o cabide onde seu casaco está pendurado e pega um anti-inflamatório. Já é a terceira vez na semana que toma esse tipo de medicamento, ele sabe que tem de parar, o abuso de anti-inflamatórios está relacionado à falência dos rins, outra coisa que Joan sempre diz que nunca mais vai fazer, mas sempre acaba fazendo, é dormir em hotéis com mulheres semidesconhecidas.
Pega no frigobar uma garrafa de água e engole o comprimido, depois vai até a janela e fica desenhando no vidro embaçado, um retângulo, uma elipse, um número nove. O ar-condicionado foi regulado para que ele e a tal mulher que lhe foi apresentada pela irmã pudessem ficar sem roupas e sem cobertores. O frio nesse ano está intenso, a previsão era de que a temperatura nessa madrugada fosse chegar a zero grau. Você vai gostar da Neide, ela é bonita e tem um tremendo senso de humor, foi assim que a irmã de Joan disse. Ele respondeu que nem a mulher mais espetacular do mundo seria capaz de redimir um nome horrível como Neide, e que senso de humor em geral nada mais é do que um salvo-conduto para as pessoas se comportarem abusivamente. A despeito disso, Joan acabou indo se encontrar com a Neide.
A necessidade de escovar os dentes leva Joan ao banheiro. Ao abrir a porta imediatamente ele vê, atrás do vidro fosco do box, o contorno de um corpo feminino, vestido, pendurado pelo pescoço com um cinto. Um corpo enforcado. Joan recua em pânico e sai do aparamento. Desce até o lobby do hotel e observa uma butique sendo montada, vitrine, manequins, caixas de papelão. Pensa, e se suspeitarem de mim por algum motivo? Neide. Tremendo senso de humor. Etc. Nunca dá pra saber o que vai pelo íntimo de ninguém, sobretudo essas pessoas que têm um tremendo senso de humor. Joan decide telefonar para a ex-mulher, o atual namorado dela é criminalista, mas a chamada cai na caixa postal e ele decide não deixar recado. Toma o elevador de novo e volta ao apartamento. Alguma decisão precisa ser tomada, se demorar mais um pouco seu comportamento de fato parecerá suspeito.
Decide procurar algum bilhete que Neide possa ter deixado e, sentindo horror e repulsa, abre a porta do banheiro e empurra o vidro do box. O cadáver está de costas para ele, com roupas exageradamente grandes que não deixam nenhum trecho da pele visível, inclusive as mãos. Joan o toca e sua expectativa é contrariada ao sentir a rigidez artificial do conjunto formado por cabeça, tronco e membros, conjunto também inesperadamente leve. Na superfície plástica do rosto está escrito com caneta marca texto, enganei o bobo, há, há, e num dos bolsos das roupas exageradamente grandes Joan encontra uma carta: Juan, mi amore, esqueci de avisar que eu tinha dermatologista hoje cedo, então saí e deixei você nanando. Mas antes resolvi fazer essa brincadeirinha contigo, pedi um manequim emprestado numa loja que estão montando lá embaixo e, voilá! Espero que você não fique bravinho. Quando descer para fazer o check out devolve o manequim, tá? Mille baci, mille baisers, mil beijos.
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