PRAZER SOLITÁRIO, Eduardo Haak

Sou um homem educado, estudei em colégio interno em Lausanne, na Suíça, falo quatro idiomas, entendo de pintura, sei quais composições de Arnold Schoenberg são atonais (Pierrot Lunaire) e quais são dodecafônicas (Moses und Aron), sempre que minha mulher está fechada no quarto bato na porta e digo com licença. Acho a etiqueta, palavra originada do grego ethos, um assunto fascinante, um saber sob muitos aspectos superior à filosofia. Tenho edições raras dos manuais de Bonvicino da Riva, de Giovanni della Casa, de François de Cullières. Mas também sou um sátiro, um hedonista, um homem devotado aos crus e grossos prazeres sensuais. O mais recente livro que arrematei em leilão, um pequeno volume in oitavo impresso em Varsóvia, em 1931, trata de um prazer controverso que durante a história sempre suscitou embates entre detratores (muitos) e defensores (raros). A bibliografia desse assunto não é muito extensa, então posso dizer que tenho virtualmente todos os livros que foram publicados a respeito dele nos últimos cinco mil anos.

 

Um dia minha mulher falou, Eugênio, mais um livro que você trouxer para casa eu vou embora, chega de livro aqui. (Minha mulher é uma débil mental, só compra esses best sellers com capas cafonas, compra e só, nem essas porcarias ela consegue ler.) Outra coisa que andava me indispondo com ela é o fato de eu fumar cachimbo (fumo desde que larguei o cigarro, tive que parar, infarto, stents, não enfartei por ser velho, tenho só trinta e nove anos, minha família tem histórico de problemas no coração, tentei fumar charuto mas não me adaptei), foi então que eu decidi alugar um apartamento para colocar parte da minha biblioteca e poder cachimbar em paz.

 

Virgínia, que é uma de minhas namoradas (amante é uma palavra deplorável), está lendo agora com impostação teatral um trecho do livro editado em Varsóvia sobre o tal prazer controverso, execrado, ignóbil, etc. Como ela não sabe polonês limita-se a emitir as palavras com os sons que as vogais e as consoantes têm em nosso idioma, wraz z opisem przyjemności, está boa a pronúncia?, ela pergunta, rindo, respondo que está excelente. Virgínia então me estende o livro e diz, pronto, já fiz minha parte, agora traduza, quero saber que prazer proibido é esse que anda tentando o meu homem. E, aliás, nem pense em fugir hoje, viu?, eu quero te ver fumando, desde que te conheço eu nunca te vi com o cachimbo aceso.

 

Conheci Virgínia no teatro, quando ela estava fazendo um monólogo no qual aparecia nua em cena. O texto era medíocre, eu tenho quatro amantes, Januário, Márcio, Júlio, Augusto, meu apelido é Clotilde Calendário, mas Virgínia também é uma atriz medíocre, o único atrativo daquela peça era a exibição de sua soberba nudez. A visão de seu corpo me levou até a fazer algo que raramente faço, cheguei em casa e me masturbei, então amigos em comum nos puseram em contato e na semana seguinte ela veio pela primeira vez aqui no meu apartamento-biblioteca.

 

Normalmente tenho vontade de ficar sozinho depois do sexo, logo chamo o táxi para qualquer mulher que eu traga aqui e aí fico horas entretido com meus livros e meu cachimbo. Mas isso não ocorre com Virgínia, apesar de ser má atriz ela é inteligente e sua conversa é agradável, o prazer de fodê-la e o prazer ouvir as histórias sempre curiosas que ela conta podia ser acrescido àquele outro prazer que ela mencionou, o prazer proibido que anda tentando o, entre aspas, homem dela.

 

As mulheres têm nojo dos homens que não cortam as unhas, dos que têm mau-hálito e dos que cospem, li uma vez num dos manuais de etiqueta que em situações íntimas caso seja necessário o auxílio da saliva para introduzir o pênis intra vas a coisa deve ser feita com discrição, um cavalheiro não cospe diretamente na própria glande, sobretudo à vista da amada, pois isso é um hábito próprio de carvoeiros e carroceiros. Enquanto olho para a capa do livro que Virgínia me devolveu eu penso, digo ou não digo? O Przyjemności Plucie, Warszawa, Polska, 1931, Sobre o Prazer de Cuspir. Descobri o inigualável prazer de cuspir quando comecei a fumar cachimbo, já que o cachimbo estimula a salivação bem mais que outros tipos de tabaco, especialmente nos iniciantes. Além de livros raros, agora também coleciono escarradeiras, a última que comprei foi uma peça da Guerra Civil Americana, lá estão gravados em baixo relevo o símbolo da União e a data, 1862. Não sei se é porque foi a última que eu comprei, mas é essa escarradeira que eu tenho usado quase que exclusivamente. Meu sonho seria fazer amor com Virgínia e depois ficar conversando com ela aqui na sala, fumando cachimbo e cuspindo.
Ponho o livro de volta na estante e pego um cachimbo e uma lata de tabaco. Acondiciono-o no fornilho e digo à Virgínia, hoje é você que vai fumar. Ela olha para o cachimbo com curiosidade, o leva a boca e diz, elementar, meu caro. Giro a pedra do isqueiro, aproximo a chama e digo para ela fazer algumas sucções curtas até o tabaco acender. Digo também para ela não tragar a fumaça. Mulheres não ficam elegantes fumando cachimbo, ao contrário do charuto, que confere a algumas um ar provocativo e licencioso. Virgínia bafora algumas vezes e diz, queima um pouco a língua, né?, ai, tô com vontade de cuspir, eu pego a escarradeira, ela cospe e dá risada, eu rio também. Ela me estende o cachimbo e diz, não quero mais, fuma você o resto, digo que agora não estou com vontade.

 

Levo a escarradeira ao banheiro e a lavo, pensando, sem chance, cuspir é mesmo muito feio, não dá pra fazer isso na frente de ninguém, até a Virgínia, sendo tão teatral e tudo, ficou grotesca cuspindo.  Volto à sala e ficamos dando uns beijos, quando ela perguntar de novo sobre o tal prazer proibido invento qualquer coisa, a lista dos prazeres humanos não tem fim, alguns são solitários (cuspir) e outros não – Virgínia se levanta, me puxa pela mão e me leva para o quarto.



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APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta) eduardo haak, 2018 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)