Paula sai do happy hour.
O manobrista lhe entrega o carro, ela se põe em movimento sem prender o cinto. Percorre menos de um quarteirão e no cruzamento leva uma batida, de um carro que avançou no sinal fechado. Seus colegas, sentados na calçada em frente ao bar, correm para socorrê-la.
O impacto arremessou Paula sobre o console, espalhando moedas e rompendo um copo descartável de água mineral. Um estagiário, Adílio, vê quando ela pula desnorteada para o banco do passageiro. Seu vestido está fora do lugar, o que deixa a calcinha à mostra. A presença da alavanca do câmbio, com seu formato fálico, mais o vestido erguido de Paula, mais sua expressão de dor, leva Adílio a conceber uma fantasia ignóbil, caralho, mano, será que eu vi mesmo o que eu acho que vi?
Embora não ignorasse ter sido eleita a advogada mais gostosa do escritório, Paula tentava com sua postura sempre séria se livrar dessa fama. Raras vezes ia a happy hours, ocasiões em que só bebia água. Também contratou uma estagiária bonita, pretendendo com isso que aqueles empregados subalternos todos escolhessem outra musa. Aliás, quem teve essa ideia da contratação foi o marido de Paula, que sabia o quanto a aborrecia essa coisa de ser a advogada mais gostosa, etc.
A fantasia ignóbil do estagiário virou fato à medida que a história circulou, sim, ele viu, não é mentira, a bolota do câmbio estava enfiada no cu dela, uau!, a mulher tem que ser arrombadíssima pra assimilar a coisa assim, hem?, etc. Quando a história chegou em Paula, ela pensou em falar com um dos donos do escritório para que demitisse o estagiário.
Mas Paula acabou decidindo fazer outra coisa.
Foi ao estacionamento do escritório e saiu dirigindo o carro do estagiário, cuja chave estava no contato. Rodou uns quarenta minutos, trocando as marchas sem usar a embreagem, fazendo rascantes reduções, de terceira para segunda e de segunda para primeira. Ao voltar ao escritório, a caixa do câmbio estava seriamente danificada. Paula então desceu do carro e, vendo que o para-brisa estava coberto por uma fina camada de poeira, escreveu nele a palavra cu.
Daniel foi reprovado no teste para uma peça cujo diretor havia garantido que o papel era dele.
Além disso, seus cabelos andam caindo e as mulheres não têm retornado suas ligações.
Daniel é desses caras altos e grandes de quem elas costumam gostar, mas mesmo assim no último mês ele levou três tocos em sequência.
Foi então que decidiu consultar uma médium.
Daniel sobe agora a Haddock Lobo, vira na Paulista e vai caminhando. Em seu bolso está um papel, venha me conhecer, me chamo Eutrópia e vou augurar seu futuro.
Chega ao endereço, na Rua Fernando de Albuquerque, e é atendido pela vidente.
O apartamento cheira a desinfetante de pinho e ao lado da cama há um equipamento que Daniel não tarda a reconhecer, trata-se de uma obsoleta máquina de ultrassom transvaginal.
Antes de se decidir pela carreira de ator Daniel estudou até o quarto ano de medicina. Ele pergunta, bem humorado, se ela vai tentar adivinhar seu futuro com aquilo. Eutrópia responde, sim, espera.
Ela se deita, introduz o transdutor no canal vaginal e o leva até o colo do útero. Daniel observa as imagens que aparecem no monitor, lembrando-se das aulas de semiologia médica na faculdade, semiologia, do grego semeion, sinal, e logos, discurso, ramo da patologia geral que estuda os sinais e os sintomas das doenças. Eutrópia diz, está vendo?, uma letra “x” ali?
Daniel diz que sim, então ela diz que os caminhos espirituais de Daniel estão totalmente bloqueados e que para desbloqueá-los ele deverá seguir rigorosamente as instruções que ela vai dar, o misifio vai usar essa blusa aqui por sete dias, só vai tirar para tomar banho, o.k.?
Daniel sai do apartamento usando a blusa.
Na Paulista as pessoas leem o que está escrito na blusa de Daniel e olham espantadas para ele, pensando que talvez ele seja estrangeiro e que foi vítima de uma gozação, ei, coloca isso aqui, boceta quer dizer olá em português.
Vicente é atropelado.
O impacto, de força média, o faz pensar antes na vergonha de ser observado pelos transeuntes, caído, do que nas possíveis lesões que sofreu.
Ao se levantar, tensiona vários grupos musculares e vê que não está sentindo nenhuma dor significativa.
Afasta-se do carro. Vai andando e tentando se distrair: qual foi a última vez que... apontei um lápis?
Chega enfim ao prédio e anuncia-se ao porteiro.
Enquanto espera na calçada, Vicente vê se aproximar um sujeito usando uma camiseta em que está escrito alguma coisa no alfabeto cirílico.
O sujeito dá a impressão de que irá entrar no prédio, mas segue adiante.
O portão é destrancado.
Vicente entra nas dependências do prédio e caminha até o elevador, sentindo que precisa expelir algo do nariz. São Paulo teve hoje o dia mais seco do ano, a umidade relativa do ar ficou abaixo de catorze por cento. Ao descer, no décimo oitavo andar, limpa o que tirou das fossas nasais na parte de baixo de um dos extintores de incêndio.
Toca a campainha e Witória abre a porta.
Ela está usando uma roupa transparente e, por ter acabado de chupar gelo, sua língua está com uma curiosa e excitante mistura de calor e frieza.
Vicente interrompe o beijo e diz, vou ao banheiro, tá?
No banheiro, vasculha um nécessaire de Witória, médica reumatologista, e encontra uma caixa de tramadol, um analgésico opioide. Se tomar isso sua pressão vai despencar e não vai ser possível manter o pênis ereto.
Witória vai para o quarto e tira a roupa.
Vicente caminha a seu encontro arrastando uma das pernas, fingindo que é um trejeito galante.
Além da perna, começaram a doer seu pulso esquerdo, cabeça e tórax.
O sexo é executado.
Sentindo o prenúncio do orgasmo e começando a ter a hemorragia intracraniana que em menos de vinte minutos o matará, Vicente pensa, comi, o cu e a boceta, finalmente comi.
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