FILME BRASILEIRO, Eduardo Haak

Está passando um filme brasileiro na TV. O filme é antigo, sua imagem é fosca, com excesso de granulação, etc. Você não reconhece o ator em cena, que usa um paletó xadrez e uma calça de tergal lilás. São duas e catorze e você vai à cozinha fazer café.

 

Talvez porque esse filme brasileiro, feito em 1977, seja uma espécie de ruína, daí que não faça diferença deixar de ver duas ou três cenas (toda ruína é descontínua), você fica na cozinha esperando a água esquentar. Você abre o armário, pega a lata de café e descobre que o pó acabou. Então desliga o fogão, despeja a água na pia e a dilatação repentina do aço provoca um barulho, blam.

 

De volta à sala, você se deita no sofá. Você se sente relaxado, distendido. Ou não? Talvez o que você esteja sentindo seja aquela agradável indiferença que ainda não degenerou em tédio. Ou aquela sensação de estabilidade que dá quando você se livra de um aperto. Ou aquele senso de autossuficiência que ocorre quando você deixa de sentir curiosidade por algo ou por alguém.

 

O filme agora mostra o sujeito da calça lilás deitando-se com uma mulher de penhoar ao som de uma daquelas músicas clássicas feitas com sintetizador, hooked on classics.

 

Seu telefone faz barulho, é a mulher-nascida-em-1968-mas-que-ainda-está-gostosa perguntando se você está acordado. Você digita a resposta, estou. Ela escreve, então vem tomar um café comigo, saí do plantão agora, dei uma parada naquela padaria. Você pensa no que provavelmente vai acontecer se for encontrá-la: vocês irão para o apartamento dela, etc.

 

Além da 1968, pode-se dizer que atualmente você tem situações ativas com a advogada-presbiteriana-nascida-em-1985-que-quer-se-casar; com a o.k.-você-venceu-batata-frita-nascida-em-1982; com a Tom-Cruise-nascida-em-1990. Mas sua relação com a 1968 é especial. Talvez porque vocês sejam feitos do mesmo tipo de matéria, das mesmas angústias e ausências, da mesma urgência não declarada. O declínio é parte constitutiva de vocês dois: das pessoas nascidas em 1971, 94,7% ainda estão vivas; das de 1970, 93,2%; de 1969, 92,6%; de 1968, 92,1%.

 

Você pega a chave da moto, o capacete e sobe até o Sumaré. O lugar onde a 1968 está te esperando fica ao lado daquele prédio que não é mais da MTV.

 

Essa região sempre faz você pensar numa comissária de bordo que você namorou quando tinha vinte anos. Ela, que era bem mais velha que você, costumava ficar furiosa porque você sempre trocava as pilhas gastas de seu walkman pelas pilhas novas dos controles remotos dela.

 

Você entra no restaurante e logo vê 1968-que ainda-está-gostosa sentada a uma mesa. Você anda até ela, a beija e diz, e-aí-como-está, sem fazer inflexão de pergunta. Você pede um café e uma água. Enquanto 1968 vai ao banheiro você observa dois sujeitos, não muito mais velhos que você, mas já bastante desgastados. O que está pior usa um corte de cabelo que não se sustenta mais por causa da escassez de fios, o que dá ao conjunto cabeça-cabelos uma impressão de incongruência. O outro, cujo cabelo também está ruim, com uma opacidade causada por excesso de tintura ou loção, ri e diz, gostou, hem? Eu também tenho minhas boas ideias.

 

Você e a 1968 saem do restaurante e descem até a Rua Iperoig. Ela mora num prédio de três andares, antigo, sem elevador. Enquanto você sobe a escada atrás dela, você pensa que talvez vocês sejam um para o outro algo como fantasmas com cuja aparição podem contar. Você sempre gostou de coisas ambíguas, fronteiriças entre o existente e o não existente. Você sempre gostou de pensar em si mesmo como uma assombração.

 

Há isotônico de tangerina na geladeira de 1968 e você pega um. Ela vem do quarto com uma toalha pendurada no ombro e diz, fica à vontade, vou tomar um banho.

 

Mas antes de ir para o banheiro 1968 se senta no braço do sofá e diz, olha, Edu, tem uma coisa que eu preciso te dizer. Eu acho que é a última vez que a gente vai ter um encontro com essas... características.

 

Características, você repete, com inflexão de pergunta.

 

Eu estou me relacionando. É um homem mais velho que a princípio eu achei que não ia dar em nada. Mas acho que eu estou começando a gostar mesmo dele.

 

Você dá um gole no isotônico. Das pessoas que nasceram em 1967, 91,6% ainda estão vivas. Das de 1966, 90,2%. De 1965, 88,4%.

 

É isso. A lógica das coisas entre nós foi sempre mais ou menos essa, não?, ela diz.

 

Você não tem muita certeza sobre o que ela quer dizer, mas como não ter muita certeza sobre o que Mariana quer dizer sempre fez parte da lógica desse namoro-fantasma de vocês, você se limita a dizer, realmente.

 

Mariana se levanta, vai ao banheiro e tranca a porta. É a primeira vez que você a ouve trancar a porta para tomar banho.



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APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta) eduardo haak, 2018 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)