Gato me diz que estamos perdendo a capacidade de discriminar cheiros. Ele, que é o primo com quem mais me dou, veio me buscar no aeroporto com a Alfa 2300 que foi do meu pai e diz, num tom debochado e apocalíptico, São Paulo é um cadáver insepulto, essa cidade fede, dióxido de enxofre, sulfatos, um rio que cinquenta por cento é merda e os outros cinquenta são dejetos químicos, a gente precisa sair daqui o quanto antes, meninão. Penso no que ele acabou de dizer, uma cidade decomposta, habitada por vermes, e me lembro do cheiro de óleo de amêndoas que tinha no corredor do prédio da minha avó, em Curitiba. Penso também na carta que um outro primo, o Guido, me mandou, dizendo que ele está morando numa cidade perto da Iugoslávia, que ele atravessa a fronteira para abastecer o carro, que a gasolina subsidiada pela União Soviética custa dez vezes menos. Não entendi tudo o que ele escreveu, metade da carta estava em italiano, mas deduzi que há uma base militar próxima à cidade e que duas vezes por ano a defesa civil faz exercícios de evacuação para o caso de um ataque nuclear. Os outdoors na Avenida Bandeirantes estão todos com propagandas políticas, Jânio, Reynaldo de Barros, Montoro 5 vice Quércia. Coloco meus óculos O Buraco da Fechadura e pergunto ao Gato se posso ligar o ar condicionado.
Chego em casa e toco a campainha, mas ninguém atende. Levanto o capacho, pego a chave e abro a porta. Sinto um cheiro atenuado de perfume feminino, não sei se da minha mãe ou da Berenice, e vou até o quarto, onde desfaço a mala. O reencontro com objetos familiares – o pôster do Antonio Peticov, que mostra uma escada em que cada degrau tem uma cor, minhas revistas, o aparelho de som –, tudo isso me dá uma sensação quase eufórica. Recosto-me na cama e lembro-me de que Fiorella pediu para eu ligar assim que chegasse. Nessas duas semanas a gente se falou a cada três ou quatro dias. Cogito que se eu ligar ela vai querer me ver hoje. Tiro a carteira do bolso de trás, que está me incomodando, e aproveito para esvaziar os outros bolsos: autorização do juizado de menores, passagem, duas notas de duzentos, um maço de cigarros amarrotado, um isqueiro.
Fiorella diz que quer ir ao planetário e me pergunta se já fui. Vou pegá-la evitando avenidas, essa foi a condição que meu pai impôs para deixar que eu usasse o carro, um Fiat 147 que ele comprou para minha mãe e que ela não usa. Não me lembro se já fui ao planetário, o que significa que se fui foi há muito tempo e não foi algo marcante. No carro Fiorella muda de ideia e diz que talvez seria legal se fôssemos ao cinema. Conto a ela sobre a viagem, digo que gastei quatro filmes de trinta e seis poses, digo que Salvador tem cheiro de urina e que Brasília tem cheiro de incêndio, de coisa seca, estiagem. No shopping nenhum filme nos interessa, então paramos para comer. Depois a levo para minha casa. Onde está sua mãe? E a Berenice? Digo que elas foram a um bingo no Clube Pinheiros, na verdade elas foram visitar um médium fora de São Paulo, desde que minha avó morreu minha mãe se apegou ao espiritismo, mas não quero entrar nesse assunto. Ligo o som e me deito com Fiorella. Olho para seu rosto e observo seus contrastes, sobrancelhas e cílios que parecem ter sido desenhados com nanquim. Fecho os olhos para contar quanto tempo sua imagem perdura em minha memória. Depois de beijá-la tento colocar a mão dentro de sua blusa, mas ela se esquiva. Ela me pergunta o que há naquela caixa na prateleira mais alta, eu respondo, filmes super-oito. Mordo seu ombro e ela diz, Artur, posso te pedir uma coisa? Digo que pode, então ela diz, hoje eu quero ficar abraçada com você, só abraçada. Digo que tudo bem. Ela diz, depois de um tempo, você deve estar decepcionado comigo, não? Digo que não, que não estou.
Penthouse Club, na Pedroso Alvarenga. Queria ir com a Clara, mas ela estava atendendo outro cliente, então fui com uma tal de Soninha que nunca havia visto aqui. O Gato foi com a Patrícia e o estou esperando, sentado no sofá da recepção. Há um aquário embutido numa parede, onde quatro kinguios se movimentam numa água que está começando a ficar turva. Gosto do ruído da bomba de ar, um ruído que lembra motor de geladeira, contínuo, subliminar, hipnótico.
Acendo um cigarro.
As garotas que trabalham aqui têm o padrão comum às casas desse nível, são bonitas, à primeira vista impressionam, mas logo você entende por que se tornaram prostitutas. Há outros lugares desse tipo aqui no Itaim, o Brut, na Eduardo Souza Aranha, o Segredo da Dama, na Renato Paes de Barros, um lugar sem outra identificação além de relax for men, na Tabapuã. Às vezes tenho a impressão de que nunca vou conseguir sair dessa região. Eu nasci em 1966, no Hospital São Luiz, na Avenida Santo Amaro. Moro desde que nasci na mesma casa, na Rua Napoleão Michel. Estudo desde o primeiro ano no Liceu Eduardo Prado, na Jacurici. Quando criança gostava de ir à biblioteca na Rua Cojuba, onde sempre ia atrás do mesmo livro, um livro de História Brasileira no qual havia uma ilustração de duas páginas, em papel couchê, mostrando o corpo do Tiradentes esquartejado.
Vejo uma reportagem na Hippus em que há uma foto do meu pai com a legenda, Marcelo Rupert, criador da raça appaloosa. Jamais me interessei por cavalos, o que durante um tempo me fez pensar que a relação distanciada que tenho com meu pai tinha raiz em minha indiferença a seus interesses. Depois percebi que ele era distanciado em relação a quase tudo, com exceção, talvez, à minha irmã Berenice. Com o tempo também percebi sua afetividade mesclada a desprezo pelo Gato, seu sobrinho: e aí, picareta, que anda fazendo?, vendendo tóxicos?, tirando uns cobres dos veados que vão atrás de rapazes em fliperamas?, praticando surf?
As coisas de que meu pai gosta: cavalos, jazz. (O Karmann-Ghia 1963, cuja quilometragem se mantém inalterada há quase vinte anos? Como se isso, o número 00761 marcado no velocímetro, fosse uma senha que impedisse o tempo de avançar?) Estive poucas vezes no lugar que ele chama de seu refúgio, lugar ascese e transcendência, como ouvi minha mãe dizer uma vez, com amarga ironia. Um espaço de trezentos metros quadrados, sem divisórias, que ele construiu na cobertura de um prédio que foi da minha avó (alguns apartamentos lá ainda são nossos), na Rua Haddock Lobo. A última vez em que estive lá foi um pouco antes de viajar, eu aproveitei que meu pai estava fora de São Paulo e fui lá, sozinho, numa noite de terça-feira. A sensação que tive foi como se estivesse violando um tabu, penetrando um espaço interdito, cometendo um tipo de incesto pelo qual seria fatalmente punido.
Gato me fala sobre uma garota da faculdade dele chamada Gisele, a mina é muito xarope, meninão, sabe o que ela faz?, ela leva canja, canja na faculdade, numa garrafa térmica.
Estamos no Jack in the Box da Joaquim Floriano, para onde viemos depois de termos passado a tarde jogando fliperama no Beleza Pura. Na mesa ao lado da nossa há dois irmãos gêmeos e um deles está usando óculos escuros O Buraco da Fechadura, com a armação branca. Gato diz que desconfia que a tal da Gisele seja maconheira, o pior é que ela é gostosa, às vezes eu fico tentado a chegar nela, mas se você dá trela pra uma mina maluca assim depois ela não sai do seu pé. Gato também diz que anda pensando em fazer uns filmes e me pergunta sobre aquele salão que meu pai tem, na cobertura de um prédio. O gêmeo que está de óculos escuros na mesa ao lado da nossa acende um cigarro e brinca de expelir a fumaça por um canudo.
Filmes?, pergunto.
É. Sabe aqueles velhos lá do Palmeiras com quem eu jogo dominó? Eu disse que tinha uns filmes para vender, filme de mulher pelada. Os caras ficaram doidos. A gente podia fazer uma boa grana com isso, meninão. Pega umas meninas que querem ser atrizes, inventa que é teste para um filme. A gente só ia gastar com negativo e revelação. Teu pai ainda tem aqueles cacarecos todos, câmera, tripé?
Tem, mas nem a pau que ele vai liberar o espaço lá.
Será?
Certeza absoluta.
A gente podia então dar uma usadinha no espaço à revelia dele. Que tal?
Esquece. O zelador do prédio, o seu Marcílio, é o maior dedo duro, se a gente fizesse isso ele iria correndo contar.
A gente engraxa o Marcílio, então.
Sonho que estou vendo um Super 200 da Vasp decolar de Congonhas no sentido da Avenida Bandeirantes. Fiorella me diz que não há duas pessoas capazes de sentir o gosto de água da mesma maneira e me sinto um pouco confuso com isso. Precisamos ir pegar a segunda via de sua carteira de identidade na delegacia, você está nervosa com alguma coisa?, pergunto. As ruas estão alagadas, as bocas de lobo estão entupidas, alguém diz na TV, o brasileiro é porco, joga papel no chão, foi por isso que a jornalista Márcia Mendes desistiu de viver. O ruído do Super 200 decolando é um estrondo continuado e fecho os olhos para contar quanto tempo consigo ouvi-lo até que ele se dissolva, fade out.
Uma garota nua andando de patins na cobertura do meu pai, foi essa a cena que o Gato imaginou. Calculo quantos pés de negativo são necessários para um filme curto, de dez a quinze minutos de projeção. A colega de faculdade dele, a tal da Canja na Garrafa Térmica, disse que topa fazer. Penso que seria mais prático filmar em VHS ou Betamax, mas quase ninguém no Brasil tem aparelho de videocassete. Talvez meu pai tenha algumas latas de negativos virgens lá no espaço dele, onde fica todo o equipamento de filmagem.
Levei muito tempo para precisar qual o cheiro que esse lugar tem. É o cheiro que fica impregnado naquela rodela de cortiça da tampa da tequila José Cuervo. Observo alguns quadros, Antonio Dias, Robert Rauschenberg, Wesley Duke Lee. Ascese e transcendência. Às vezes penso que daqui a trinta anos terei mais ou menos a idade que meu pai tem hoje. Procuro as latas de filme virgem e logo as encontro, ao lado do projetor. Há um filme no projetor e o ligo e as imagens registradas nos fotogramas de oito milímetros aparecem, projetadas na tela.
Dirijo pela Henrique Schaumann e viro na Teodoro Sampaio e subo até a Doutor Arnaldo e sigo pela Paulista e atravesso o Paraíso e vejo o muro onde pretendo pichar Fiorella vagabunda com a lata de spray que está no porta-luvas, mas desisto e esmurro a direção do carro, e esmurro a direção de novo, e sigo pela Manoel da Nóbrega e pego a saída para o Itaim e paro no Baby’o, onde tomo um milk shake de baunilha, depois desço até a Iguatemi e viro na Jerônimo da Veiga e passo em frente ao Ta Matete e viro na João Cachoeira, Ofner, Casa Moysés, Play Store, Supermercado MM, viro na Pedroso e na Manuel Guedes e vejo o Zeca maconheiro em sua Mobilete e o Tolouse-Lautrec Bar e o Carinho Quente e uma boate nova chamada Super-Oito e penso na sinistra coincidência disso, super-8.
Chego em casa e desço do carro para abrir a porta da garagem e a abro e vejo que meu pai está sentado num dos degraus da escada. Coloco o carro para dentro e desligo o motor. Meu pai se levanta e caminha lentamente até o carro e coloca a mão sobre o capô, com a delicadeza de alguém que estivesse verificando a temperatura de um filho febril. Então ele vem até a janela e olha para o velocímetro. A quilometragem do Karmann-Ghia subiu de 00761 para 00803. Meu pai olha para mim e sustento o olhar de volta, ele sabe que eu descobri o que aconteceu e talvez esteja achando que a reparação foi correta, então ele dá um tapinha carinhoso no meu queixo e eu ouço sua respiração.
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