Cristiano desce do táxi e caminha até o prédio. O vigia noturno está dormindo, então Cristiano toca o interfone três vezes até o portão ser destravado. Diz boa-noite ao passar pela guarita, atravessa o hall e fica um tempo parado em frente ao elevador. Não poderá vomitar em casa, vômito faz muito barulho e sua mulher não pode saber que ele voltou a beber.
O banheiro dos funcionários fica no salão de festas, porém Cristiano decide subir à piscina. Deitar-se numa das espreguiçadeiras depois de vomitar vai fazê-lo se sentir melhor. Ele chama o elevador e aperta o décimo sétimo andar. Depois, sobe um lance de escada. Ao entrar na cobertura, Cristiano se depara com o zelador fazendo sexo com o rapaz que está morando com ele, alegadamente um sobrinho que veio de Maceió.
Enquanto volta para o térreo, Cristiano se lembra da musiquinha que a garotada do prédio onde ele passou a infância cantava para o zelador, desci no elevador, comendo o zelador. Pensa também num sonho recente que teve, no qual Angélica apontava um lápis e espalhava grafite moído pelo tórax dele, agora você está lubrificado e poderá entrar de corpo inteiro em mim, vamos, venha. Será que esse sonho significa que Cristiano está com medo de acabar sendo totalmente absorvido pela amante? Malleus maleficarum maleficat & earum haeresim, ut framea potentissima conterens. Ele chega ao salão de festas, que hoje é um depósito de entulhos, móveis quebrados, etc. Ajoelha-se em frente à privada e vomita. Depois, lava o rosto e faz um gargarejo com o enxaguante bucal à base de álcool que vem usando para disfarçar o constante cheiro de uísque que há em sua respiração.
Trabalhar sob efeito de bebida não lhe afeta a perfórmance, avalia Cristiano, enquanto termina de tomar banho. Se fosse cirurgião talvez, mas seu trabalho consiste apenas em ouvir as histórias cretinas de seus pacientes e riscar receitas de calmantes. Ele sai do banheiro e, para não entrar no quarto, onde a mulher possivelmente já está dormindo, pega uma camiseta e um calção na pilha de roupas que estão para passar. Volta à sala, estira-se na poltrona e fica olhando para a janela. O mal-estar se dissipou, agora Cristiano se sente só letárgico.
O barulho do elevador ressoa na parede do apartamento contígua ao poço por onde se deslocam essas máquinas de subir e descer.
Cristiano se levanta, vai até a porta e olha apreensivo pelo visor. Tem a impressão de que o elevador parou em seu andar. O zelador sendo sodomizado, etc. Sim, que-que o machão nordestino vai fazer, agora que um morador descobriu tudo? Virá matar? Intimidar? Ou pedirá demissão sem explicar o motivo? Seu Raimundo, subi no elevador comendo o zelador, puxou um revólver e mandou os moleques do prédio calarem a boca. Isso foi em 1990. Será que alagoanos esquentados, piauienses de pavio curto e potiguares descendentes de cangaceiros ainda resolvem os conflitos na base do pau de fogo?
Cristiano se afasta da porta, mas o fato de não ver ninguém no hall não o tranquiliza. Pega o taser (arma que mantém no consultório para se defender de um eventual paciente agressivo) e sai ao corredor. Os elevadores estão em outros andares. Ele olha na escada, não há ninguém.
Volta ao apartamento e se deita no sofá.
E se ele matar o zelador, como-é-que-é-o-nome-do-cara-mesmo?, antes de ser morto? E – pior, porque muito mais provável – se não for o zelador a pessoa que o está espreitando?
Apesar de jamais ter se envolvido com vizinhas, mesmo quando era solteiro, Cristiano acabou cometendo uma imprudência semelhante, já que Angélica (sonho do lápis sendo apontado, etc.), sua amante, é amiga de um casal que mora no décimo quarto andar. Uma vez ela passou uma mensagem, estou aqui na escada, venha. Foi a única vez em que fizeram sexo no prédio.
Cristiano depois disse que era melhor aquilo não se repetir, que era arriscado, etc. Ela disse o.k. e não fez mais propostas com aquele teor. Porém nunca se sabe se uma mulher aparentemente equilibrada no fundo não passa de uma insana. E se ela decidir mandar para Sílvia, mulher de Cristiano, os quadros que pintou dele nu? Uma vez Cristiano viu um filme em que um homem apontava um revólver para o próprio pênis e dizia, eu devia atirar, você só me trouxe problemas a vida toda. Malleus maleficarum é um livro medieval que ensina a identificar bruxas. Há um frasco de Rivotril na cristaleira. Cristiano se levanta, toma dezesseis gotas e se deita, dessa vez no chão.
Sim, agora não há dúvida, o elevador parou ali, no andar dele. Cristiano olha para a porta, aguardando ver a maçaneta ser girada.
A maçaneta é girada.
Em seguida ele ouve o barulho de chave entrando na fechadura. A louca de alguma forma deve ter conseguido fazer uma cópia. Sim-sim, Cristiano já deveria ter notado que Angélica vem se tornando cada vez mais agressiva e desafiadora.
Mas e se for o zelador? Zeladores costumam ter –
Cristiano corre e se posta ao lado da porta segurando o taser. O aparelho, designado arma de baixa letalidade, dá um choque elétrico de cinquenta mil volts e zero vírgula zero zero trinta e seis ampère. A eletroconvulsoterapia, prescrita para casos de depressão refratários a tratamento medicamentoso, usa descargas elétricas de baixa voltagem e amperagem. Já a execução de prisioneiros na cadeira elétrica usa amperagens e voltagens altíssimas. Antes de voltar a beber Cristiano experimentou atenuar sua angústia correndo de moto, sempre domingo de manhã, sempre na estrada vicinal entre Itu e Jundiaí. Algumas vezes filmou a travessia, com uma câmera acoplada ao capacete.
A moto de Cristiano é uma Ducati 1098. A Ducati 1098 acelera de zero a cem em aproximadamente 2,5 segundos e chega a atingir a velocidade de 271 km/h. Sílvia, sua mulher, sem querer acabou vendo uma das filmagens e disse, você é um demente.
A porta, enfim, é aberta.
A diferença entre suspense e surpresa é que no suspense sempre sabemos o que nos ameaça. Já a surpresa nos surpreende por não termos pensado em nenhum instante naquilo que vem a nos surpreender.
Então quer dizer. Então quer dizer que Sílvia. Então quer dizer que Sílvia não estava no quarto. Então quer dizer que Sílvia não estava no quarto, dormindo ou fingindo dormir.
Sílvia, parada no umbral da porta, olha para o rosto de Cristiano. Depois olha para o taser na mão dele e solta um riso seco, sarcástico, nasal. Entra na sala, põe a bolsa na mesa e diz, senta.
Precisamos conversar.
Cristiano obedece. (Onde Sílvia podia estar a essa hora?)
Seja lá o que ela vai dizer, o fato de ela não representar uma ameaça imediata, o fato de ela ser uma ameaça parcelável e negociável, ainda que potencialmente muito destrutiva, é algo bastante alentador para Cristiano, agora, nesse instante, aqui.
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