Fecho a janela e ponho na frente dela um colchão. O isolamento acústico não é perfeito, mas atenua um pouco os ruídos. Dois churrascos estão sendo feitos na vizinhança, num está tocando pancadão e no outro pagode. Os grupos aumentam o volume de tempos em tempos, alegando que o outro aumentou antes, a coisa acaba virando uma disputa entre cacofonia e distorção harmônica. Recosto-me na cama e abro o livro, Die Vernunftprinzipien der Natur und der Gnade, princípios da natureza e da graça fundados na razão. Tento ler uma página, duas, fecho, não está dando para me concentrar, hoje o barulho está pior que nos outros dias. Fico deitado, contando números em ordem decrescente até que a irritação passe.
Sou preto e pobre, mas tenho disciplina. Nunca gerei filho de bobeira (fiz vasectomia com dezenove anos), nem arruinei meus dentes ou fiquei gordo comendo porcarias açucaradas (coisa que pobre adora; aliás, a obesidade nas classes C e D já é um fato). Com pouco dinheiro é possível se alimentar bem no Brasil, vivo há quatro anos basicamente de uvas passas e amendoins, que são baratos e riquíssimos em nutrientes, flavonoides, antioxidantes, colesterol HDL, Sigmund Freud, Lucien Freud, Mark Rothko, mímesis práxeos, a imitação da ação segundo Aristóteles, aprendi muitas coisas quando namorei Paloma, uma garota rica cujos pais, professores universitários, achavam uma coisa progressista e politicamente correta a filha namorar um crioulo.
A família de Paloma tinha uma casa bacana com piscina e eu costumava passar os finais de semana lá. Nunca me impressionei com carros (outra mania de pobre), o que me chamava atenção no mundo de Paloma, além do modo silencioso como viviam, era a cortesia e o trato delicado entre as pessoas. Aqui nesse lugar se um motorista dá passagem a outro fica com fama de frouxo, tudo é barulhento, caótico, exasperado, açougues têm alto-falantes, pastores berram suas imprecações, kombis transitam anunciando material de limpeza, etc. Não é um ambiente propício para se ler Gottfried Leibniz, não é um ambiente propício para que qualidades humanas superiores floresçam, na verdade esse lugar é uma merda e nunca vai produzir algo diferente de merda, não adianta nada maestros famosos virem aqui dar aulas de graça achando que Haydn ou Mozart vão mudar a mentalidade dessa gente.
Caminho até a olaria abandonada, lugar onde tem algum silêncio. Leio durante uma hora até que perco a concentração por estar sexualmente excitado, não sei por que isso acontece, ler em alemão às vezes me deixa assim, um dia comentei isso com um amigo e ele disse, é que tu é crioulo e quando fala alemão deve imaginar que tá passando xaveco numa loirinha, há, há.
Levanto-me e vou andando e pensando em Paloma e em como nosso namoro acabou. Seria mais cômodo eu dizer que acabou porque acabou, namoros começam e terminam como qualquer outra coisa, filmes, músicas, partidas de futebol. Mas eu sei que Paloma tinha uma visão fetichizada de mim, no fundo ela esperava que eu fosse me comportar como um chefe tribal africano, que fosse fazer com ela na cama uma espécie de justiça histórica, arrombar o cu da branquinha caucasiana com minha piroca preta de vinte centímetros, etc. (Paloma dizia que J. M.Coetzee era um reaça.) Agora ela está em Berlim, estudando balé e provavelmente sendo enrabada por algum crioulo, algum refugiado nigeriano que trabalha como grafiteiro e DJ. Filho da puta.
Volto para casa e troco de roupa e penso nas opções que tenho, sei que esse tesão ensandecido não vai passar enquanto eu não der uma, die vernunftprinzipien der natur und der gnade, princípios da natureza e da graça fundados na razão, alemão é mesmo um língua tesuda da porra. Pego ônibus e metrô e decido saltar em alguma estação da zona oeste, Vila Madalena, Pinheiros, os ricos são afeitos a espaços privativos, jamais forçam alguém a testemunhar seus hábitos, já os pobres são agressivamente promíscuos, têm mania de churrasqueira e ouvem música a todo volume, livro de Jeremias, Deus dando uma de marido traído e furioso, comparando Israel a uma prostituta, eu tirei você daquele lugar e agora você me trai idolatrando Baal, etc., cruzo a Rua Wisard e vejo um grupo de garotas que eram amigas da Paloma, estabeleço contato visual e uma delas me reconhece e sorri, vou à mesa delas e depois vamos à exposição de uma artista plástica japonesa e depois a uma festa num apartamento na Vila Buarque, festa que se transforma numa orgia, um aglomerado de corpos nus que, ao contrário da língua alemã e sua prosódia, não me deixa excitado, uma das amigas da Paloma vem até mim, me beija e diz, eu quero ficar sozinha com você, respondo que moro longe e que ela vai ter de me levar para um lugar onde eu possa dormir.
Saímos e vamos para o apartamento dela, fique à vontade, ela diz, vou tomar banho. A amiga de Paloma é dessas falsas magras que vestidas não parecem ter curvas ou peitos grandes, ela fica de bruços e pede que eu me deite em cima dela, avalio que ela é tão gostosa quanto Paloma e então imagino que sou o canalha daquele crioulo nigeriano e que estou comendo a Paloma num apartamento na Oderberger Strasse.
Depois que terminamos conversamos um pouco e ela diz, bom, preciso dormir, levanto supercedo amanhã, se quiser pode ficar aqui no quarto, ou então, se preferir, o sofá da sala se transforma em cama, ali naquele armário tem travesseiro e edredom.
Fico um longo tempo na cama, sem sentir o menor prenúncio de que o sono vai chegar. Levanto-me e vou ao banheiro e decido bater uma, apesar de ter gozado duas vezes com a amiga da Paloma a coisa ainda não baixou, die vernunftprinzipien der natur, etc. Depois vou para a sala e deito-me no sofá. Estou com dor de cabeça e vejo na estante o que parece ser uma cesta com remédios. Levanto-me, vasculho seu conteúdo e encontro uma cartela de analgésico. O prazo de validade vence daqui a um mês, Paloma me contou que uma vez estava deprimida e que tomou uma caixa inteira de antidepressivo e que só não morreu porque o remédio estava vencido. Engulo um comprimido e fico ali, no sofá, esperando para ver o que acontece, esperando que a dor de cabeça passe, esperando que o sono venha, esperando que Paloma um dia volte e me procure, esperando que amanhã faça sol, esperando uma porrada de outras coisas, willst du hoffnung?, esperando, esperando, esperando, esperando, sempre esperando. Esperar é a pior desgraça que tem.
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