Otávia puxa-o num gesto brusco, avança a boca na direção da dele e ocorre o choque, o que lasca um dente frontal de Ênio. Ele passa a língua, sente a aspereza e a pontiagudidade e tem a impressão de que um imenso espaço vazio foi deixado ali. Olha-se num espelho e decide ir a um pronto-socorro dentário antes de voltar para casa. Poderia dizer à mulher que quebrou o dente jogando squash, a besta do Vítor me acertou uma raquetada. Porém, Ênio sempre se purga dos resíduos de suas amantes, toma banho com água fervendo, faz exames de sangue, joga fora os presentes que recebe. Reingressar em sua vida real com um dente partido por uma delas é algo que o faria se sentir corrompido e desintegrado.
Busca num aplicativo uma clínica e dirige até lá. Um painel luminoso diz, dentistas dia e noite, Ênio estaciona, toca o interfone e a porta é destravada. Um sujeito de branco está na recepção jogando paciência. A sala cheira a cigarro recente, esse treco vicia, não?, o sujeito diz, apontando para a tela do computador e soltando pelo nariz um riso curto. Jogos, mulheres, tabaco, Ênio pensa. Seu endocrinologista, o doutor Albernaz, é fumante. Embora Ênio não fume ele admira os tabagistas, sobretudo quando médicos. Vícios tornam as pessoas mais indulgentes e humanas.
Barbaridade, tchê guevara, como foi que tu fez isso?, o dentista pergunta ao examiná-lo. Ênio diz, minha namorada veio me beijar, ela estava, hum, entusiasmada, entusiasmo uns tons acima, sabe como é? O dentista observa o dente mais um pouco e diz, bom, eu vou fazer uma restauração provisória aí, pela maneira como ocorreu o abalo depois tu vai ter que fazer uma coroa. Ênio nota que suas mãos, mesmo com as luvas de borracha, cheiram a cinzeiro. Ele aplica uma injeção e Ênio sente o torpor se espalhar na gengiva, primeiro como um formigamento, depois como uma espécie de inchaço.
Conversam coisas triviais, até que Ênio pergunta se ele já atendeu algum caso parecido com esse. O dentista diz, descerrando um sorriso ocultado pela máscara, ah, uma vez chegou aqui um paciente, um senhor já meio de idade, ele usava prótese, dentadura, cremalheira, perereca, sabia que há no Brasil mais de setenta sinônimos para prótese dentária?, então, esse senhor chegou aqui e disse que queria fazer uma dentadura nova, eu perguntei se a que ele usava estava com algum problema, ele disse que não, aí ele explicou que queria ter duas, que a prenda dele, tu sabe o que é prenda?, é um termo lá do sul, quer dizer a senhora, a mulher dele, então, ele disse que a mulher dele percebeu que quando ele, hum, a chupava, que o que a fazia gozar mesmo era a estimulação clitoriana, o atrito do clitóris com a superfície rígida e saliente da dentadura. Para resumir o caso, a mulher passou a se masturbar com a dentadura do velho e pediu para ter uma só para ela, para quando ele não estivesse em casa.
A cada semáforo em que para Ênio sorri para o retrovisor, tentando perceber alguma diferença entre os dentes frontais. Convence-se de que o serviço provisório foi bem feito. Já perto de casa percebe que está dominado por um pensamento voluptuoso e decide voltar ao consultório. Estaciona, toca o interfone várias vezes, mas a porta não é destravada. O gaúcho deve estar atendendo, pensa, decepcionado e aflito. Pensa um pouco, entra no carro e dirige até o único cemitério que conhece que não tem arame farpado. Tira o macaco do porta-malas, pula o muro e vai até os túmulos de parede. Toda pessoa com mais de setenta anos de cinquenta anos atrás usava dentadura, pensa, enquanto vê as datas gravadas nas placas de cimento. Escolhe uma, 1891, 1966, encaixa o macaco e o gira até a placa estourar. Ilumina o espaço com o telefone, localiza o crânio e desencaixa a dentadura postiça dele.
Para numa lanchonete, vai ao banheiro e lava a dentadura, primeiro com sabão, depois com álcool gel. Repete a operação três vezes. Sai, pega o carro e desce a Rua Augusta. Aborda uma mulher, que parece um pouco surpresa de que um homem tão bonito e com um carro daqueles esteja pegando uma prostituta de rua. Já Ênio está experimentando algo que não lhe ocorria há muito tempo, e que ele nem tinha mais esperança de que um dia fosse lhe ocorrer, que é a sensação de estar no limiar de um mundo inexplorado. A consciência que ele tem disso tudo, agora, nesse exato instante, é aguda e iluminadora.
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