A primeira peça que Cecília fez foi aos quatro anos, na escola. Em seguida começou a aparecer na televisão, em comerciais de brinquedos, de bancos, de lanchonetes fast food. Sua presença na mídia foi contínua até o começo da puberdade, quando seus pais decidiram que ela deveria estudar interpretação a sério e a matricularam numa renomada escola de atores. Talentosa e disciplinada, Cecília se tornou uma promissora atriz juvenil, fazendo aparições em novelas e filmes. Um diretor escalou-a para o que viria a ser seu primeiro papel de relevo.
Contudo, a poucas semanas do início das gravações, seu contrato com a TV foi cancelado.
Um duplo homicídio, cometido por uma jovem da alta classe média contra os pais enquanto estes faziam sauna (trancou-os lá, elevou a temperatura a setenta graus, etc.), dominou os noticiários da época. O rosto da jovem e bela assassina dava às pessoas que o viam na TV uma incômoda impressão de familiaridade, era um rosto que parecia já ter sido visto muitas vezes, mas onde, quando, em que circunstância? Foi o namorado de Cecília que fez a conexão, sabe por que os caras da TV te vetaram?, porque você é parecida com essa garota que matou os pais. Agora você vai ter que esperar esfriar esse assunto, enquanto essa fulaninha for notícia e enquanto o povo não esquecer a fuça dela, ninguém vai te oferecer trabalho.
De fato Cecília era muito parecida com a moça que matou os genitores, que foi condenada à pena máxima de prisão. E de fato as coisas ocorreram conforme o namorado previu, tendo a carreira artística de Cecília entrado num estado de suspensão a partir daquilo tudo. O modo que Cecília encontrou para não ficar parada foi prestando vestibular para Rádio e TV, além de continuar atuando em peças de grupos semiprofissionais.
A assassina, em vez de cair no esquecimento, foi se tornando uma figura cada vez mais famosa, sendo constantemente alvo de reportagens sensacionalistas, médium psicografa mensagem dos pais da Patricinha Assassina, Filha, Nós perdoamos você, etc. Cecília se formou, viveu um ano na Europa, voltou ao Brasil e arranjou um emprego sem qualquer relação com artes dramáticas. Seu rosto e seu tipo de beleza adquiriram uma aura maldita, acabando por penetrar no inconsciente público como símbolo de abominação e perversidade.
O desejo de realizar sua verdadeira vocação, a de representar papéis, teve ainda um último e fracassado impulso, quando ela fez teste para o papel de uma bêbada ninfomaníaca de meia idade que diz sempre ter dependido da bondade de estranhos.
Ao contrário do da Patricinha Assassina, que em plena meia idade tornou-se atriz pornô, fato ao qual a imprensa deu bastante cobertura, o envelhecimento foi precoce e atroz com Cecília. Aos cinquenta tomou a decisão de nunca mais olhar a própria imagem refletida em espelho ou em qualquer superfície envidraçada. Baniu de casa também os utensílios metálicos em que pudesse acabar se enxergando. A decisão, que deveria durar décadas, não durou nem cinco dias.
Comprar uma arma e descobrir onde a Patricinha Assassina morava não foi difícil.
Cecília efetuou quatro disparos contra aquela que lhe roubou o rosto e a condenou a ter uma vida obscura, dois desses tiros sendo transfixantes e mortais. Não evitou ser presa pela polícia, nem se incomodou com o fato de a imprensa, nas reportagens sobre o crime, ter dado todo o destaque à assassinada, e quase nenhum a ela.
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