DOMINAÇÕES, Eduardo Haak

Entro em casa e lá está, no teto, o ponto luminoso gerado por caneta laser. Faz uma semana que isso vem se repetindo. O prédio que fica em frente ao meu tem cinquenta e seis janelas. Mas o quem-decidiu-fazer-isso também pode estar num carro estacionado na rua. Antes que eu vá fechar a cortina o ponto vermelho some.

 

Vou à cozinha e tiro um café da máquina enquanto passo os olhos por uma carta do banco. Em seguida abro o envelope de uma instituição de caridade que costumo ajudar. O impresso mostra a foto de um desses idosos genéricos, não suficientemente individualizados (nada mais parecido com um chinês do que outro chinês, etc.). Penso que ainda faltam uns quarenta anos pra eu ficar velho como aquele sujeito, e ficar com as orelhas grandes e o corpo cheio de calombos e nódulos.

 

No banho lavo as axilas duas vezes e mantenho aquela escova de esfregar as costas pendurada no órgão genital (certe penis tuus caelum versus erectus est). Seco-me e vou ao closet e pego uma camisa, uma calça e um par de sapatos Cole Haan, mas decido não usá-los. Digito uma mensagem, aviso Serafina que estou indo pra casa dela. A casa de Serafina fica num bairro contíguo ao Itaim-Bibi, um bairro só de casas, a lei de zoneamento não permite que prédios sejam construídos lá, nem que haja estabelecimento de comércio.

 

Ando quinze minutos, Serafina abre a porta e damos um beijo e vamos para a sala e eu me jogo numa poltrona. Sobre a mesa de centro há uma garrafa de vinho e um decanter. Debaixo do vidro da mesa há um painel com várias tiras da Turma da Mônica, daquelas antigas em que os traços da Mônica eram mais toscos e pontiagudos. Reparo que Serafina está ficando com os dentes manchados por causa do vinho tinto. A bebida nunca afetou negativamente seu estado de ânimo, só deixa sua fala meio atrapalhada, às vezes. Faço um cálculo aproximado de que Serafina será uma mulher sexualmente atraente só por mais cinco anos.

 

Decidimos comer em casa mesmo. Enquanto comemos, na cozinha, ela me fala de um restaurador de carros antigos, um sujeito que só trabalha com MP Lafer (não tenho certeza se me lembro que carro é esse). Minha lasanha não descongelou direito e coloco mais um minuto no micro-ondas, então algumas partes dela ficam excessivamente quentes e percebo que não estou mais com vontade de comer. Vou ao banheiro na parte de cima da casa, onde sei que há um frasco de Rivotril, numa gaveta debaixo da pia. Quando saio, vejo que Serafina já está no quarto e vou até lá e me jogo na cama e ela tira o vestido e se deita de costas para mim, encostando o corpo no meu, então ela pega minha mão e a leva à sua coxa e diz, olha, estou arrepiada.

 

Ficamos deitados umas duas horas, então Serafina passa a falar sobre bitcoin, ela diz que eu deveria vender alguns imóveis e investir nisso, que só nos últimos três meses o patrimônio dela em moeda digital quase duplicou. Cálculo que Serafina é uma mulher de uns trezentos metros quadrados (área útil, IPTU dos Jardins), depois calculo que a mulher que tenho visto com mais frequência, a Rose, deve ter uns cinquenta metros quadrados, se tanto, IPTU da Barra Funda. Já eu sou um homem de mais ou menos cinco mil metros (quarenta e um imóveis, IPTUs diversificados, um pênis capaz de sustentar pendurado por dez minutos um objeto de trezentos gramas).

 

Levanto-me e decido ir ao banheiro tomar o Rivotril que não tomei àquela hora. Gotejo o frasco direto na boca e puxo o ar entre os dentes para apreciar o sabor, talvez o que eu mais goste no Rivotril seja isso, o gosto dele. Volto para o quarto e tenho um flash de uma cena antiga ocorrida ali, em 2009, quando eu e Serafina éramos namorados, uma discussão em que houve pesada troca de ofensas e eu disse algo do tipo, seu problema é que você se acha uma pessoa mais interessante do que de fato você é. Recolho minhas roupas do chão e digo à Serafina que vou embora, que quero dormir na minha casa.

 

Sigo pela Rua Veneza, pensando no que sempre penso quando faço esse percurso, que se algum cachorro escapar de alguma dessas casas (dogos argentinos, rottweilers, pit bulls) não terei para onde fugir. Chego à São Gabriel e desço a Jesuíno Arruda e quando chego à Renato Paes de Barros vejo um rapaz sem sapatos e sem camisa passar correndo, aflito, como se estivesse fugindo de alguma coisa, embora nada esteja em seu encalço. O rapaz tem boa aparência e a princípio penso em ajudá-lo, mas então penso melhor e decido que não estou a fim de lidar agora com alguém surtado por causa de droga.

 

Entro no meu prédio e digo boa noite para o vigia, que ainda não sei como se chama. Parece que o anterior, que eu chamava de Múmia Paralítica, foi mandado embora. (Quando era criança apelidei um tratador do haras do meu pai de Cocozino Trombino.)

 

Em casa decido tomar outro banho e vou para o quarto e olho para a lista de livros que tenho no iPad e abro alguns e experimento ler de trás pra frente, são vidro de olhos os, então desligo o iPad e me viro para dormir. Começo a ter uma sensação de sufocamento, me levanto e vou para a sala, pensando que deveria ter tomado uma dose maior de Rivotril. Deito-me no sofá e fico olhando atentamente para o teto, o lugar onde quem-decidiu-fazer-isso vem projetando diariamente o facho de laser vermelho. Fico um longo tempo em estado de prontidão, vigiando, então me sinto esgotado e acabo fechando os olhos, mas é como se isso não fizesse mais diferença. Minha imaginação, agora, parece um formigueiro, uma superconcentração de coisas agitadas, minúsculas, fora de controle.



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APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta) eduardo haak, 2018 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)