CLÓVIS DE LIMA, Eduardo Haak

Renata observa que o garrafão de água encaixado no filtro ali na sala de espera está quase vazio. Ela tem hora com doutor Romeu e a consulta já está atrasada mais de uma hora. A recepcionista tinha avisado, o doutor sempre atrasa, chegue um pouco antes. Médico bom que atende convênio é assim, atrasa, é difícil conseguir horário, quem não pode pagar consulta particular com esses cobrões precisa ter paciência.

 

O interfone soa e a porta da rua é destravada.
Puxando uma dessas malas com rodinhas, Clóvis, que é representante de um laboratório farmacêutico e cujo trabalho consiste em visitar consultórios e distribuir amostras grátis de remédios, entra na sala e pergunta à moça da recepção se o doutor está recebendo. A recepcionista diz, ih, hoje ele tá superocupado, acho que não vai dar. Clóvis fica pensativo um instante e vai ao filtro de água. Tira um copo descartável de um cilindro fixado na parede e bebe, fazendo barulho com a glote.

 

A porta do médico finalmente se abre e um paciente sai com uma dessas sacolas de exames laboratoriais na mão. Clóvis aborda doutor Romeu, boa tarde, doutor, pode ser, cinco minutinhos? A recepcionista olha apreensiva para Renata, que prontamente faz que sim, quem já esperou quase uma hora e meia pode esperar mais alguns minutos. Doutor Romeu sorri e acena para Renata, um aceno que significa, aguenta só mais um pouco, e que também pode significar cinco, cinco dedos, cinco minutos.

 

Clóvis e o médico desaparecem atrás da porta, em cujo batente há um mezuzá, objeto religioso dos judeus. A visita não demora muito, logo Clóvis volta à sala de espera puxando a mala de rodas, então doutor Romeu olha para Renata e diz, vamos?

 

No consultório Renata fala que vem tendo dificuldade para dormir e responde a uma série de perguntas do médico. Ele pega um formulário de receitas e escreve o nome do medicamento e a dosagem. A letra de Romeu é muito boa, ao contrário da de muitos de seus colegas, que costumam rabiscar receitas com garranchos ilegíveis.

 

Pede para a mocinha marcar o retorno daqui a trinta dias, o.k.?, ele diz, apertando a mão de Renata.

 

A recepcionista, que via fotos no Snapchat assim que Renata encostou no balcão, consulta os horários disponíveis no computador e pergunta se ela prefere de manhã ou de tarde. Renata responde que tanto faz, dizendo em seguida, de tarde. Recebe um papel com a data e o horário do retorno, então a recepcionista diz, ah, o rapaz do laboratório deixou isso, e lhe estende um cartão. Renata lê, Clóvis de Lima, representante comercial, agradece e sai.

 

Enquanto espera o elevador Renata rasga o cartão, em cujo verso Clóvis escreveu, obrigado! Tipinho infame, ela pensa, parece aqueles sujeitos que estudam à noite naquela faculdade ruim perto da casa dela e que ficam bebendo cerveja no bar com os colegas em vez de assistir às aulas. Renata chega à garagem, entrega o papel carimbado do estacionamento e um manobrista lhe traz o carro. Ela ajeita o banco, que foi trazido para frente, sobe a rampa e vira à direita na Conselheiro Brotero, parando em seguida na loja de conveniência que tem na esquina para comprar cigarros. Largar de fumar, como ela havia programado, não está muito factível para Renata nesse momento.

 

Ao entrar na loja ela dá de cara com o tal do Clóvis e sua ridícula mala de rodinhas. Ele está sentado numa das mesas, falando ao telefone. Renata pensa em dar meia volta, mas decide comprar cigarros ali mesmo, loja de conveniência é um lugar público, no máximo o sujeito pode tentar puxar conversa, é só ela demonstrar que está off, indisponível. Há um banco 24 horas ali dentro, Renata aproveita e tira trezentos reais, amanhã tem diarista, além disso ela gosta de sempre carregar consigo um pouco de dinheiro em cédulas. Ela olha Clóvis no rosto, que continua falando ao telefone e que lhe devolve um olhar frio, neutro e, de alguma forma, reprovador. Renata vai ao caixa e compra os cigarros e alguns chicletes.

 

Ir até a calçada e acender um cigarro e ganhar tempo para pensar, é isso que Renata decide fazer. Clóvis de Lima. Clóvis é alto e até que interessante, como é que ela não reparou nisso na sala de espera? E por que ele deixou um cartão se agora a olhou dessa maneira indiferente? Não-não, ele a olhou de forma hostil. O primeiro cigarro termina e ela acende outro. E o que Renata espera, plantada ali na calçada? E se ela for falar com ele e Clóvis a tratar mal?  E se ele estava só distraído, falando no telefone, tipo, olhou pra ela, mas não viu? E por que Renata rasgou o cartão? Um frentista do posto caminha na direção dela, o carro de Renata está bloqueando a SUV de um cliente e ela diz ao frentista, calma, já vou tirar. Renata vai até o carro e dá marcha ré e agora outro carro que está tentando entrar no posto a força a sair para a Doutor Veiga Filho, onde o fluxo logo para e a deixa retida num congestionamento que se adensa cada vez mais e que a afasta cada vez mais da possibilidade de tomar decisões que fossem realmente suas. O carro de Renata é novo e ela nunca fumou dentro dele, mas ela tira mais um cigarro da caixa e o acende sentindo vontade de chorar e pensa, dane-se que vai pegar cheiro nos bancos, dane-se, dane-se.



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APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta) eduardo haak, 2018 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)