OPIOIDES, Eduardo Haak

Ter nascido numa família rica me trouxe duas vantagens: fazer tudo o que quero, sempre que quero. Fora isso, sou igual a qualquer pessoa: não tenho imunidade contra o tédio, contra as decepções, contra o declínio natural do corpo. Moro num sistema de espaços retangulares: quartos, salas, banheiros, etc. Sou casado com uma mulher onze anos mais nova que eu e tenho uma relação erótica com outra, quatro anos mais velha. Antigamente não gostava do meu nome, Olegário. Hoje não só me acomodei a ele como não consigo me imaginar chamado de outra forma.

 

Com minha mulher tenho uma relação superficial – ela é tola, tem ideias comuns, repete tudo o que os outros dizem. Com minha amante tenho uma relação profunda – ela é inteligente, tem pensamentos insólitos, jamais a ouvi dizer um clichê. Quando a relação superficial (mulher) para de funcionar, me dedico mais à minha amante. E quando a relação profunda para de funcionar (isso acontece), me volto à minha esposa. Posso dizer que as duas me amam, ou que ao menos têm uma necessidade fundamental de mim. Não sei até que ponto preciso delas ou até que ponto as amo. Às vezes fico voluntariamente isolado, só observando as coisas que acontecem, como as pessoas se comportam, etc. Quando isso também para de funcionar, me volto a uma ou a outra, ou às duas. Ou a alguma outra.

 

Não sei até quando isso tudo vai durar.

 

Venho notando em mim alguns atos inconscientes de dissipação. Por exemplo, com certa frequência venho fazendo gastos desnecessários, coisa que jamais fiz, a ideia do desperdício e da perdulariedade sempre me causou horror. Mas é como se eu tivesse sentindo, de uns tempos para cá, a necessidade de me esvaziar, dos meus bens, dos meus pensamentos e fantasias. Minha mulher e minha amante não são perdulárias – como são ricas de nascença, como eu, compartilhamos o mesmo ethos. O problema são os casos avulsos. Semestre passado me relacionei com uma jovem artista plástica e acabei comprando um quadro de um pintor do grupo, coletivo, etc., do qual ela faz parte. Foi uma compra impulsiva, em parte motivada por caridade (artistas iniciantes são todos uns mortos de fome), em parte houve uma motivação perversa que demorei um pouco para conscientizar. Nem foi tanto o dinheiro, o quadro não foi muito caro (três mil reais), mas foi a posse daquele objeto que acabou me incomodando. Como se eu tivesse sido obrigado a levar um estranho para casa, um estranho com sua presença atravancadora. Uma noite peguei o quadro e fiquei olhando para ele. Então peguei uma caneta e comecei a escrever em sua superfície: ter nascido numa família rica me trouxe duas vantagens, etc. (Boa parte desse texto escrevi sobre a tela, depois transcrevi tudo para o computador. Quando não havia mais onde escrever, levei o quadro para o quintal e botei fogo nele.)

 

Expulsão, repulsão, nessas duas palavras está embutida a ideia de pulsão, pulso, frequência, oscilação ondulatória. Às vezes tenho sonhos em que revivo um passado (que de fato nunca existiu) em que experimento o oposto da estase e da paralisia, e digo para mim, isso existe, afinal. Um mundo em que matéria e pensamento não são estáticos e opressivos e aprisionadores, mas cheios de dinamismo. Semana passada saí com uma mulher de programa. Seus seios, naturais, eram muito bonitos, então tive um gesto imprevisto em que o contato, a princípio vicário e torpe, se sublimou: coloquei o rosto entre os seios, experimentei aquela pele macia, quente e acolhedora envolver minha testa, nariz, órbitas oculares, maxilar, e a ternura daquilo me causou uma crise de choro que não reprimi. (As únicas mulheres na frente de quem me sinto à vontade para chorar são as prostitutas. Nem sempre, porém, consigo atingir esse tipo peculiar de êxtase, isso sempre depende de uma insondável qualidade humana que uma pessoa só pode revelar no contato íntimo.)

 

A parte do quadro em que estou escrevendo isso tem uma pincelada feita numa cor suja, uma pincelada cercada de branco, isolada, fechada em si. É como um pretenso ideograma apartado de uma ordem sintagmática, um ideograma estranho, irredutível a qualquer significação estável. Três mil reais. (“Três mil ducados” é a primeira fala de Shylock em O Mercador de Veneza.) Quando o artista me disse o preço do quadro, comentei, três mil ducados, mas ele não percebeu a alusão. A mulher de programa em cujo colo ejaculei minhas lágrimas cobrou duzentos e cinquenta reais. Tenho um funcionário que teve de dar um apartamento a uma pilantra com quem ele assinou um documento de união estável, união estável que durou só oito meses.

 

Minha mulher, a tola, apesar de ter senso de preservação patrimonial, eventualmente tem casos com homens que não pertencem à nossa classe. (Mea culpa, fiz o mesmo no caso da artista plástica.) Digo para ela se precaver quanto a isso, para jamais ser emocional nessas distrações fornicatórias (mea culpa, tive o paroxismo de ternura com os peitos da mulher de programa). Um dia tive um sonho: minha mulher estava com um desses amantes não confiáveis, aí eles sofreram um acidente de carro e ela morreu. Aí levei o sujeito ao cemitério, exumei o corpo dela, enterrado há poucos dias, e disse, continua bonita, não? Toda inchada e podre, mas bonita. Aí ordenei que o cara beijasse a boca do cadáver decomposto da minha mulher.

 

(Arranquei um pedaço da pintura para abrir espaço para poder continuar escrevendo.) Faço terapia, meu único intuito ao me deslocar uma vez por semana àquele consultório é o de me distrair antecipando o que o analista vai dizer. O sonho em que fiz o amante da minha mulher beijar seu cadáver foi analisado assim: minha pulsão de morte está superando minha pulsão de vida. Um analista junguiano diria outra coisa, interpretaria o cadáver decomposto pelo conceito da putrefactio alquímica e falaria algo sobre integração de conteúdo inconsciente ao self. Um szondiano diria que o cadáver é um símbolo do meu destino compulsório, criado por meu inconsciente familiar, algo que preciso transformar em destino livre. E por aí vai.
A sensação que o sonho me deu foi de comicidade.

 

Eu deduzi a superioridade daquela mulher do metrô pelo modo como ela passava o cabelo por cima da orelha, pelo ar digno e pela disposição perfeita de seus membros, cabeça e tronco. Seu contraste com as outras passageiras, mulheres medíocres provavelmente casadas com sujeitos obesos formados em faculdades ruins, me fez pensar que a vida está cada vez pior, cada vez mais invadida por coisas insignificantes.

 

Pego o metrô todo dia para ir ao trabalho. Uso meu carro só de madrugada, uma vez por semana faço um passeio para meditar, eu gosto de pensar enquanto dirijo por ruas vazias. Meu carro é um Jaguar Mark Ten modelo 1963 que herdei do meu pai. Eu estava rodando e pensando na mulher do metrô, recombinando os números do seu número de telefone e fazendo cálculos de cabeça com eles, quando vi dois rapazes pichando um prédio. Certa vez tive uma discussão com minha mulher sobre se pichação era arte. Ela sustentou que sim. (Ela repete tudo o que os outros dizem, sobretudo seus amigos hipsters, veganos, maconheiros, bicicleteiros, tatuados.) Eu disse que quando surgisse um Leonardo da Vinci entre os rabiscadores de parede talvez eu concordasse com ela.

 

Tentei ler o que os pichadores estavam escrevendo com aquelas letras crípticas, mas não consegui. O sinal abriu e virei na Haddock Lobo. Parei naquela padaria que fica aberta vinte e quatro horas. Fiquei tomando café e observando um casal, quando notei que alguém olhava diretamente a mim. Olhei de volta e vi que era o Bruno, um amigo de adolescência que eu não via há mais de vinte anos. Conheci o Bruno quando jogávamos futebol nas categorias de base de um clube. Sua tentativa de ser jogador não deu certo. Eu cheguei a ir jogar num time da segunda divisão de Portugal, poderia ter seguido a carreira, mas não quis, voltei ao Brasil, fui fazer faculdade, etc.

 

Bruno veio sentar-se à minha mesa. Ele disse que havia se casado, me deu seu número e disse para combinarmos uma cerveja qualquer dia desses.

 

Num casamento há sempre um mandado e um mandante. Isso pode ser sutil ou explícito, mas a essência – casamento, um jogo de poder – é essa. Por tudo o que o Bruno me contou em nosso encontro, ele é dominado por uma mulher de quem, no fundo, ele tem medo e ódio. (Vi fotos dela na rede social. É uma mulherzinha com ar de portuguesa ou italiana atarracada, parece um castor gordinho.)

 

Nas raras vezes em que ele ousou levar alguma mulher de programa depois do expediente para o consultório – Bruno é oftalmologista –, sempre foi tomado por sentimentos de culpa e terror. Aos quarenta anos, está envelhecido, com o ar acuado, deve sofrer constantemente de alguma inflamação gastrointestinal de origem nervosa, colite, gastrite, etc. Senti pena dele, isso acrescido a uma coisa mal resolvida da época do futebol – sei que Bruno se ressentiu quando fui jogar profissionalmente na Europa, ele disse coisas como, ah, como é bom ser filhinho de papai, como se o fato de ele ter fracassado como jogador se devesse apenas ao fato de não ter dinheiro. (Ele era um mau jogador, eu era um bom jogador, isso é tudo.) De qualquer forma, carrego essa culpa, essa sensação desagradável de talvez ter me tornado um símbolo de frustração para um sujeito que, de uma forma ou de outra, eu quero bem.

 

Foi então que eu tive a ideia: o Bruno precisa de uma namorada. Uma namorada bonita, com um comportamento idealmente perfeito, uma mulher que não faça as pressões que as mulheres normalmente fazem. Uma mulher pra fazê-lo recuperar a autoestima, retomar o gosto pela existência, etc. Claro que um homem na draga em que ele está não conseguiria pegar mulher alguma com essas qualificações, bela, jovem, etc. Sem uma ajuda, vai continuar sendo massacrado pelo castor gordinho sabe-se lá até quando, talvez quando a gastrite e a colite virarem um câncer de reto e ele tiver de cagar na sacolinha plástica. Então fiz a proposta para a mulher do metrô, que, além de secretária, é prostituta part time (mas não tem cara nem jeito de puta, o que é fundamental para meu plano): te pago essa quantia para você namorar um amigo por uns seis meses, topa?

 

(Nesse ponto da narrativa o espaço disponível no quadro acabou, então o levei para o quintal e botei fogo nele. Sem querer acabei não transcrevendo a parte em que narrei o início do “namoro” do Bruno com a mulher do metrô, secretária e puta part time, uma narração extensa que, pensando bem, talvez mereça apenas esse resumo: a mulher do metrô marcou hora como qualquer paciente de Bruno e o seduziu. (Houve caridade em minha atitude, além de uma intenção perversa que só consegui conscientizar depois.) (Fui um Deus provedor ou um diabo tentador e, no final das contas, acusador?) O namoro foi tão deliciosamente perfeito que Bruno julgou-se capaz de retomar a posse de si, largar o castor gordinho, etc., então a mulher-do-metrô, perturbada com os desdobramentos imprevistos da farsa, contou tudo para ele. Bruno veio atrás de mim e me deu uma surra à qual não opus qualquer defesa. Terminei com o maxilar e duas costelas quebradas. Não seria o caso de tomar morfina, minhas dores não eram tão intensas, mas dei um bom dinheiro para o médico me receitar.

 

Os opioides dão uma sensação de desligamento que não tem nada a ver com o efeito daquelas drogas ridículas todas, cocaína, LSD, maconha – nada de alucinações ou estados mentais paranoicos. Nada a ver também com o entorpecimento bestial do álcool. A morfina (e a heroína, que, essencialmente, são iguais) te coloca num ponto de observação interessante, perfeitamente objetivo e lúcido – parece que, ao deprimir a atividade do sistema nervoso central, os pensamentos não são mais distorcidos por sinapses defeituosas, neurotransmissores capengas, etc. (Uma de minhas bisavós paternas, do lado monegasco da família, foi usuária de ópio por mais de trinta anos.)

 

Acho que vou me viciar um tempo nesse troço, aí quando ele deixar de funcionar (tudo, sempre, deixa de funcionar) vou para uma dessas clínicas em que roqueiros e artistas de cinema se desintoxicam. Ter nascido numa família rica me deu duas vantagens: fazer tudo o que quero, sempre que desejo.



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APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta) eduardo haak, 2018 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)