EM VIRACOPOS, EM 1983, Eduardo Haak

Viemos buscar meu pai em Viracopos. O dia ainda não clareou e a temperatura está em seis graus. Meu primo acende um cigarro enquanto cruzamos um corredor cujos pontos comerciais estão todos vazios. Olho pela porta de aço de um deles e vejo no chão jornais e uma lata de tinta. Meu primo assopra a fumaça e diz do nada, como se concluísse, assentisse, asseverasse algo, é isso aí, boneco. Antes ele me chamava de meninão, depois viu na faculdade um filme em que um sujeito chama o outro de boneca do negrão e passou a me chamar assim, de boneco.

 

Parece não haver ninguém em Viracopos além de nós. Passamos de novo pelos telefones e empurro o lugar de devolução de fichas pra ver se tem alguma. Meu primo se senta num dos bancos do saguão, põe os óculos espelhados O Buraco da Fechadura e eu vou ao banheiro. Estou sentindo taquicardia e vem à minha cabeça de modo insistente o trecho de uma música que eu cismei que está errado, já não é nem mais a sombra, da menina embaraçada? empertigada?, na saia da mamãe. Meu primo e eu tomamos remédio de regime para não dormir. Estamos em 1983 e em todas as casas há frascos com anfetaminas de regimes abandonados por nossas mães e irmãs, o que talvez explique as constantes irrupções de violência em lugares públicos, brigas em fliperamas, rachas com acidentes fatais, etc. Na porta de uma das privadas há um adesivo rasgado, Lula 82 Governador, no qual alguém rabiscou com uma esferográfica falhando, de baiano basto eu.

 

Volto ao saguão e também me sento. Meu primo diz, bafejando contra as mãos, eu não sei do que vou morrer primeiro, boneco, se de tédio ou de frio. Digo que meu coração está saindo pela boca e pergunto se o efeito da anfetamina demora para passar. Cogito que quando voltar a São Paulo vou comprar Valix, estamos em 1983 e calmantes são vendidos em qualquer farmácia sem receita. Meu primo diz que vou ficar assim para sempre, agora já era, boneco, entraste numa viagem sem volta, há, há.

 

Um DC-8 da Japan Air Lines liga os motores e vamos até um vidro observá-lo, porém o barulho e a demora para haver qualquer movimento faz com que nos afastemos dali. Andamos de novo pelo corredor dos conjuntos comerciais vazios e vejo que há uma revista Club junto aos jornais e à lata de tinta . Digo ao meu primo e ele pega um rodo e a puxa para fora. Molhamos a revista num bebedouro e arrancamos as páginas de nu frontal e sexo explícito e grudamos nas pilastras de concreto armado do corredor, chegamos ao saguão e botamos uma foto no balcão da companhia aérea que está trazendo meu pai dos Estados Unidos.

 

Um servente aparece e vê a foto e olha para nós e meu primo diz, esse povo de Campinas é tudo tarado, não é?, tudo moralista da boca pra fora, tenho um monte de tias aqui, todas casaram grávidas. O servente arranca a foto sem dizer nada, entra no corredor e faz o mesmo com as outras páginas que grudamos. O avião japonês aumenta o barulho e começa a se movimentar e meu primo diz, vamos fazer uma aposta?, aposto um barão que esse DC-8 vai explodir na decolagem. A ideia de fazer uma aposta dessas a princípio me choca, mas não consigo articular uma objeção e precisamos nos distrair com alguma coisa.

 

Saímos para a parte externa do aeroporto. Meu primo acende outro cigarro, na ilusão de que a fumaça inalada diminuirá seu frio. O barulho do DC-8, um jato de primeira geração, é tão forte que dá a sensação de que está sendo acelerado dentro de nós, e essa sensação de força e imanência faz meus olhos se encherem de lágrimas, o que disfarço, simulando um bocejo.



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APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta) eduardo haak, 2018 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)