MANHÃ, Eduardo Haak

Num lugar chamado Roof. Observo uma garota com a cabeça raspada nas têmporas usando uma camiseta em que se lê carga perecível. Ela me mostra a língua e sorrio de volta. Estou bebendo água, tomei dez miligramas de Paxium, um clorodiazepóxido que trouxe de Portugal. Sviatoslav me conta uma piada horripilante sobre microcefalia e penso se a garota que me mostrou a língua não será uma dessas pentelhas que usam palavras como empoderamento e tutor para designar donos de cachorro.

 

Foi uma ideia bem ruim avisar as pessoas em cima da hora, diz Sviatoslav, que está com um cigarro apagado entre os dedos. Respondo que essa foi minha intenção, não forçar nada, não gerar compromisso, olá-pessoal, estou indo agora para o Roof comemorar meus trinta e sete anos, quem quiser apareça. Sviatoslav diz, sacudindo o cigarro, você é burro, maestro, muito burro, mulher não sai de casa de improviso, elas se depilam, entende?, depilam e pintam as unhas, vamos até a varanda.

 

Sviatoslav acende o cigarro e a garota perecível aparece e também acende um cigarro. Sviatoslav diz, ei, psiu, hoje é aniversário dele, dê os parabéns, a garota me olha e diz parabéns e pergunta se não sou da TV. Maestro é meu apelido na turma de pôquer, não me lembro por que fui apelidado assim. A garota, que é mais velha do que me pareceu a distância, tem um rosto para o qual não me ocorre qualquer correção.

 

Os dois terminam de fumar e voltamos para dentro. Grandes tempos estão chegando, diz um letreiro amarelo imitando neon, fixado numa parede próxima a um grupo de vinte e poucas pessoas que também festejam um aniversário. Sviatoslav conta à garota, que se chama Virgínia, a piada da microcefalia, ela ri e diz, que horror. Uma banda começa a tocar e tenho vontade de dizer a ela que não tenho nada a ver com o Sviatoslav, esse babaca contador de piadas, mas vou ter de falar gritando e resolvo ficar quieto.

 

Um gordo drogado com a camisa empapada de suor acompanha a banda pulando e sacudindo os braços de modo desordenado e esbarra pela segunda vez numa mesa com dois casais, o que gera um princípio de briga. Sviatoslav vai ao banheiro e sinalizo à Virgínia, vamos embora? Ela topa e saímos e caminhamos até meu carro e vamos a um café e ela me conta que dá aulas de inglês e francês pela internet. Tomo mais meio comprimido de Paxium e vamos ao Madame Satã e descemos direto à pista, fazia mais de vinte anos que não entrava ali.

 

Quase cinco da manhã e levo Virgínia para casa, na Rua Vitorino Carmilo, Barra Funda. Sua casa se parece com todas as casas que já foram demolidas na Vitorino Carmilo e cujo destino será a demolição num prazo de quatro ou cinco anos. Ela diz que mora sozinha e me convida para entrar. Entramos e me sento num sofá e ela diz que está com fome e vai até a cozinha e põe umas salsichas para ferver e pergunta se eu quero, respondo que não, obrigado. Peço para ir ao banheiro, um daqueles banheiros construídos debaixo da escada que a cabeça bate no teto. Lavo o rosto e as mãos e volto à sala. Virgínia me conta que aquela era a casa dos avós dela, mas que todo mundo morreu, avós, pais, só sobraram ela e um irmão que mora no Mato Grosso do Sul. Ela termina de comer e me pergunta, posso te pedir uma coisa? Respondo que sim. Virgínia diz que quer ver comigo, agora, um de seus filmes prediletos, um filme chamado Horizonte Perdido. Digo para ela escolher a cena de que ela mais gosta, que não sei se aguento ver o filme inteiro. Ela põe o DVD e o avança e vemos a cena escolhida e depois fazemos sexo.

 

Digo que preciso ir embora, então nos levantamos do sofá e ela me acompanha até o portão e ficamos nos olhando e lhe dou um beijo.

 

Uma Kombi de entrega de jornal passa e interrompo o beijo e me afasto de seu rosto e digo, é isso aí. Virgínia repete, é isso aí. Ando até meu carro e dou a partida. Observo que as lâmpadas da Vitorino Carmilo ainda são de vapor de mercúrio e que o céu ainda não começou a clarear. Hoje é o meu primeiro dia com trinta e sete anos.



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APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta) eduardo haak, 2018 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)