Marcela me deixou um recado na rede social, eu quero te ver hoje.
Olho as fotos dela, a mulher quando não é muito bonita aparece nas fotos fazendo sempre a mesma pose facial caricatural, Marcela entretanto expõe o rosto com a franqueza das mulheres que sabem, que são bonitas e, fotogênicas.
Eu, que me chamo Judas Biglione, falo fazendo essas, pausas, isso irritava minha ex-mulher, ela dizia que eu parecia um, retardado falando assim, ponto.
Fiz clareamento dentário em Marcela, ela preencheu a ficha de dados pessoais dizendo estado civil casada, nunca mais tive qualquer coisa com mulher comprometida desde que fui mantido doze horas em cárcere privado num apartamento no qual só havia dois objetos, um alicate de castração e um livro do Isaac Babel, um escritor judeu ucraniano que se meteu a comer a mulher do chefe da polícia secreta soviética e acabou fuzilado.
Dou uma de desentendido e respondo perguntando se Marcela está com algum problema nos dentes.
Ela escreve, isso, aquele implante que eu te disse que está meio alto, acho que precisa dar uma lixadinha, vou estar perto do seu consultório no final da tarde, tem como me encaixar, ponto de interrogação.
Não me lembro de Marcela ter falado em implante. Ela, que é casada com um bicheiro, poderia ir a esses dentistas que cobram uma fortuna e que têm consultórios nesses prediões com fachada espelhada que dá pra ver das janelas o Parque do Ibirapuera inteiro, mas por alguma razão ela resolveu cismar logo comigo.
Vou até a mesa da minha secretária e pergunto como está a agenda hoje, ela fala o nome dos pacientes e os horários, digo para desmarcar todos a partir das dezesseis horas, a senhora pode ir embora mais cedo, dona Viviane, vou receber meu contador, estou com umas dúvidas sobre o imposto de renda.
Viviane diz, o.k., quer que eu remarque as consultas, ponto de interrogação.
Sim, pode remarcar, respondo.
Viviane tem um português impecável, usa o presente do subjuntivo, remarque, odeio aquelas pessoas que dizem, quer que eu remarco?, sua foto na rede social é de quando ela era quinze anos mais jovem e trinta quilos mais magra, as melhores secretárias são assim, gordas e velhas, já tive secretárias jovens e bonitas e só tive problemas.
Atendo três pacientes e finalmente fico sozinho.
Meu consultório fica numa sobreloja, Dr. J. Biglione, Cirurgião Dentista, uso a abreviação jota, Judas é um nome nefasto, uma vez vi na TV um programa sobre dois irmãos que tinham sido batizados pelos pais de Calígula e Hitler, ponto. Venho sentindo uns cheiros estranhos aqui no consultório, parece meio cheiro de produto químico, aqui embaixo tem um restaurante, um desses restaurantes furrecas que servem almoço comercial, tudo aqui está caindo aos pedaços, vencendo o contrato vou procurar um lugar melhor, eu tive de apertar o cinto por causa do meu divórcio, a coisa entrou em litígio e eu me estrepei, perdi apartamento, carro, etc.
O interfone soa, destravo a porta.
Marcela sobe a escada e vejo que ela está com uma blusa transparente, dizem que o marido da Marcela, o tal bicheiro, uma vez obrigou um cara a tomar laxativo e então botou o sujeito numa daquelas cadeirinhas do teleférico de São Vicente, tudo isso só porque o sujeito disse bom-dia pra Marcela, Marcela e sua blusa transparente e seu sutiã preto e seu pescoço longo modiglianesco e sua calça também meio transparente, mulher quando quer ser sacana não tem pra ninguém, fodam-se alicate de castração, cárcere privado, Isaac Babel.
Conduzo-a à sala de atendimento e pergunto, qual dente você está sentindo que está alto, ponto de interrogação.
Ela diz, eu examino, é, está um pouco saliente mesmo.
Pego a broca e desgasto a superfície, depois faço o teste de mordedura, acho que agora está o.k.
Marcela então me agarra e me dá um beijo na boca.
Tiramos as roupas e ajusto a cadeira numa posição para facilitar, ponho a camisinha e entro em Marcela.
Estou quase gozando e sinto o consultório tremer, uma explosão, sim, as luzes se apagam e uma parte do teto desaba sobre nós, vazamento de gás no restaurante, aqueles cheiros esquisitos todos que eu vinha sentindo, etc., uma viga de madeira nos imobiliza, eu e Marcela, nus, na posição de cópula. Os bombeiros chegam e começam a trabalhar e apesar da seriedade deles a situação é cômica e sei que a imprensa vai noticiar tudo de modo sensacionalista e o marido de Marcela vai saber e eu penso na história do cara que cagou nas calças no teleférico de São Vicente só porque deu bom-dia a Marcela e eu noto que não estou sentindo minhas pernas, devo ter tido alguma fratura na coluna vertebral, sim, devo estar paralítico e agora vou ter que andar de cadeira de rodas pro resto da vida e o marido da Marcela um dia vai me pegar e vai me amarrar na cadeira e aí vai me levar até a beira de uma piscina e aí ele vai dizer, ô Iscariotes, agora tu vai brincar de corrida de cadeira de rodas subaquática, e aí ele vai me empurrar na piscina e eu vou ficar lá, glub, glub, glub, submerso, e minha vida toda vai passar diante de meus olhos como se fosse um filme, um filme, fodam-se Isaac Babel, cárcere privado, alicate de castração.
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