Estou na sala de um dos meus vinte e seis apartamentos. Ao todo tenho quarenta e quatro imóveis. (Apartamento, sistema de espaços retangulares apartados do relento. Apartar, separar, etc.) A prancha Rip Curl fabricada em 1985 que arrematei num leilão está encostada no sofá. (Coleciono pranchas de surf antigas.) Em frente ao sofá tem uma mesa baixa sobre a qual estão um binóculo e uma régua.
Faz sol.
Desço pelo elevador observando um risco recém-feito no painel de botões, ando até a garagem e subo na bicicleta. Saio à rua e pedalo por sete quadras. Hoje o mar aqui de Santos está escuro, verde-petróleo, não sei como tem gente que tem coragem de entrar. A fila de navios para atracar nas docas fica maior a cada dia que passa.
Chego ao mercado e fatalmente me lembro de outras coisas de que necessito: café, papel higiênico, etc. Num dos corredores vejo uma mulher que lê a tampa de um extrato de tomate. Tenho a tentação de me apresentar, olá, prazer em conhecê-la, meu nome é Vinícius.
Eu confio em meu hálito, voz, dentição, altura, tonicidade muscular, o que digo para abordar mulheres nunca fez a menor diferença.
Já meu barbeiro, por exemplo, que é obeso e tem dentes ruins, não pode se dar a esse luxo. Sempre peço para ele me contar a história dos dois aleijados de Itu que dividiam uma perna mecânica e que tiravam no par ou ímpar para ver quem ia usá-la quando havia um baile.
Adoro essa história. Até já experimentei seduzir uma fulana dizendo, abre aspas, sabia que fulano dançou rock and roll com a perna mecânica de sicrano?, fecha aspas.
Há, há.
Contudo, me sinto inibido de me apresentar à mulher que lê a tampa do molho de tomate. Venho me sentindo assim desde que aquela vlogueira gostosinha, Maria de Fátima, me disse aquelas coisas, publicou na internet, etc.
Volto para casa e guardo as compras. Daqui a pouco o interfone vai tocar, será o porteiro avisando, é Débora, eu direi, o.k., pode mandar subir.
Débora me disse no último e-mail, não se preocupe, resolverei seu problema de forma cabal. Entrei em contato com ela através de um anúncio, Débora, terapeuta holística, fobias e traumas. Depois que expus detalhadamente meu caso ela pediu que eu comprasse uma régua e um pacote de sal grosso, para serem usados na sessão.
O interfone toca e a recebo com a porta já aberta. Descubro que Débora é uma mulher senescente, o que me deixa em parte aliviado. Depois da troca de fórmulas de cortesia vamos ao sofá e ela diz, data venia, agora mostre-me a régua.
Estendo a mão à mesa de centro. Ela pergunta, fez a medição como eu mandei? Respondo que sim. Débora então tira da bolsa uma fita adesiva preta e faz uma marca na altura que eu aponto, dezessete centímetros. Ela ergue a régua acima da cabeça e murmura de olhos fechados palavras que não compreendo, finalizando com um consummatum est, agora você vai fixar o obiectum na parede e deve mantê-lo assim, exposto, por vinte e um dias.
Débora vai embora e imediatamente removo um quadro, pendurando a régua em seu lugar. O quadro é um autorretrato de uma ex, no qual ela aparece nua e no qual, apesar da grande fidedignidade com que retratou o próprio rosto, o corpo ela decidiu fazer mais longilíneo.
Afasto-me da parede.
Não sei se estou muito sugestionado, mas a régua com a marca nos dezessete centímetros está me parecendo, ali, exposta, um objeto obsceno e, sobretudo, desmedido. Penso no pacote de sal que Débora, terapeuta holística, também pediu para eu comprar. Será que ela esqueceu? Ou foi de propósito, tipo, ela fez uma coisa aparentemente sem sentido para eu meditar a respeito? Sal grosso, pau grosso, sim, seu pau é grosso, Vinícius, além de grande, dezessete centímetros.
Terapeutas holísticas, Marias-de-Fátima vlogueiras feministas que fazem vídeos chamados Vinícius e sua pequenez, você sabe por que saco de japonês se chama Vinícius?, porque Vinícius vive com o Toquinho, sim-sim, eu preciso tomar jeito e me casar com uma garota ajuizada, parar com essa coisa de querer enfiar a pica em qualquer beldadezinha com quem eu cruze por aí, as mulheres andam muito perigosas, era meu pai que dizia, tome jeito, Vinícius, outra coisa que ele dizia era, é por isso que o Brasil não vai pra frente. Às vezes tenho uma tremenda saudade do meu pai.
Pego o binóculo e vou à janela. Focalizo a rua, ansioso, como se esse velho instrumento óptico pudesse me confirmar a existência de fantasmas, ou melhor, desse fantasma específico que acabou de sair do meu apartamento. Mas tudo o que vejo é Santos e seus habitantes, seus pecadores, seu tráfego marítimo, sua luminescência, seu mundanismo, mundo em toda extensão visível, altura, largura, profundidade.
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