FELICIDADE, Eduardo Haak

Eu preciso sacrificar meu cão e dispensar minha namorada. Retardei essas decisões o máximo que pude, mas o fato é que estou apaixonado por outra mulher e o Gabriel está surdo, quase cego e com uma doença sofrida que logo o matará. Vou fazer hoje as duas coisas, só não decidi ainda o que faço antes, se levo o cachorro para tomar a injeção e depois vou à casa da minha namorada ou vice-versa.

 

Coloco Gabriel no banco de trás do carro e dirijo alguns quarteirões até que me lembro de que estou no rodízio, então estaciono em frente a um prédio com o pisca ligado e espero vinte minutos. Falo com a mulher por quem estou apaixonado, ela me diz que está na esteira na academia e que está com sono porque ficou até de madrugada fazendo o imposto de renda, depois ela pergunta se eu já, etc. Desligo o telefone e penso em seu nome, um nome reles, candidato a ser reduzido à primeira sílaba, a namorada que vou dispensar daqui a pouco tem um nome interessante, altissonante, e daí?, eu não sinto mais nada por ela, ouço um barulho que parece um espirro e vejo que é um caminhão que freou no semáforo.

 

Dirijo pelo tempo em que o rádio transmite uma propaganda eleitoral de candidatos a vereador. Estaciono e leio a placa, aulas de piano, clássico e popular, toco a campainha. Minha namorada atende e diz, oi, que surpresa, vamos à sala e ela se senta na banqueta do piano, eu permaneço de pé e digo tudo o que tenho para dizer, digo também que estou indo sacrificar o Gabriel. Ela pergunta se ele está no carro, vamos até lá e ela o acaricia, chorando, sem dizer nada. Eu fecho os olhos em aparente contrição e a ouço se afastando, primeiro os passos, depois o ruído da porta, blam. Um homem que está indo sacrificar seu cachorro é um homem já dilacerado o bastante, a mulher sabe que não é o momento para ele ouvir impropérios de mulher ofendida. Olho para Gabriel, sussurro dentro da minha cabeça um valeu, brou e rio, quase com remorso.

 

Decido que não vou levar hoje o Gabriel à clínica veterinária. Decido também não ir dar aula na faculdade à noite. Ligo para a mulher por quem estou apaixonado e combinamos um encontro, num bar estilo speakeasy cujo acesso se dá pelo lobby de um hotel. Faz um daqueles dias frios e ensolarados de outono e vou a uma loja de vinhos, depois volto para casa e fico deitado, olhando o triângulo escaleno que o sol e a fresta da persiana projetam no teto do quarto. Fico pensando que toda felicidade é precária, toda felicidade nunca passa muito daquela coisa que você experimenta quando desmarca uma tomografia e acha que se livrou de uma suspeita desesperadora pelo simples fato de não ter ido fazer o exame. Depois, penso que hoje vou ver a mulher que estou amando, que meu cão continua vivo, que tanto faz se posso chamar essas coisas de felicidade ou não.



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APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta) eduardo haak, 2018 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)