VESTIDO DE NOIVA, Eduardo Haak

Dona Lígia é professora de matemática no curso supletivo.
Ela diz a Pedro, um aluno, vou te apresentar minhas filhas, acho que você vai gostar delas, já pensou, eu com um genro bonitão assim?, há, há. Pedro, que tem vinte anos, está começando a carreira de modelo e divide com colegas um apartamento na região central, perto da Praça da República.

 

Vir para São Paulo era seu objetivo desde pequeno. Mas as coisas aqui têm sido mais difíceis do que ele supunha, o custo de vida é alto e os trabalhos são escassos para quem está começando na profissão. Arranjar uma namorada que seja de boa família e consequentemente ter uma casa onde poderá almoçar e jantar de graça pode ser o que Pedro chama de mão na roda.

 

As filhas de dona Lígia, Alaíde e Lúcia, têm dezenove anos e são gêmeas desiguais. Sendo Lúcia a mais bonita, é ela que é apresentada pela mãe, Lucinha, esse é Pedro, um aluno meu, hoje ele vai de carona conosco. Lúcia acha Pedro simpático, então eles se adicionam, começam a conversar e em pouco tempo estão namorando.

 

Alaíde, a irmã gêmea de Lúcia, corta um tecido no ateliê da faculdade e sente vontade de fumar.
Ela é estudante de moda e o trabalho que está fazendo se chama vestido de noiva: a desconstrução, no qual funde o conceito de vestido de noiva tradicional com elementos da Vivienne Westwood, a estilista inglesa que inventou o visual punk no século passado. Como sempre, usará a irmã, Lúcia, que é bonita e esguia, para provar a roupa e tirar as fotos.
Larga a tesoura sobre a mesa, se levanta e sai do prédio da faculdade. Vê que o céu está carregado e que não demorará muito para chover. Depender de ônibus num dia desses quase faz Alaíde reconsiderar a decisão de não dirigir. Acende o cigarro e fica parada na calçada, fumando. Um carro para no semáforo e Alaíde sem querer vê sua imagem refletida no vidro. Observar-se lhe dá sempre uma sensação desalentadora. Por que não nasceu bonita como a irmã?

 

O fato de ter quase vinte anos e ainda não ter tido nenhum tipo de vivência sexual exceto as que tem consigo mesma é algo que faz Alaíde se sentir infantilizada e ridícula. Talvez por isso tudo sempre colocou apelidos nos namorados da irmã – Alucinação era o menino maconheiro da escola, Memória, o nerd superdotado, Realidade foi o primeiro namorado pra valer de Lúcia, estagiário do escritório de advocacia do pai. Agora é a vez desse sujeitinho metido a modelo. Alaíde ainda não escolheu seu apelido.

 

Estelionato?

 

Alaíde faz vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três anos. Já formada, não consegue emprego na área de moda e se vira dando aulas de inglês pela internet.

 

Sem que ninguém saiba, continua virgem.

 

Estelionato (que se tornou ator e vem fazendo algum sucesso na TV) e Lúcia decidem se casar. Lúcia, para ajudar a irmã, encomenda a ela o vestido de noiva, ei, mas não vá inventar moda, hem?, não quero nada autoral, extravagante, quero um vestido de noiva comum, bonito e comum.

 

Alaíde faz um vestido que supõe ser tradicional, mas na prova a irmã diz, não, não, não é nada disso, não foi isso que eu pedi, você precisa parar com essa mania de querer ser artista, Alaíde, aliás, todos seus problemas se originam aí, eu sou incomum, eu sou diferente, desculpa, mas você vai ter que refazer, ou vou passar o trabalho para outra costureira.

 

Humildemente Alaíde faz outro vestido, copiado de uma revista americana. Enquanto o executa a palavra costureira lhe vem à mente, sim, quando eu me apresento às pessoas digo que sou estilista, mas na verdade o que eu sou mesmo é costureira. Lúcia acha o vestido simplesmente maravilhoso, viu só como você é capaz de fazer coisas de qualidade? Você podia estar rica, Alaíde, com o talento que você tem. É só querer, sabe?, pra nossa vida ir pra frente é só a gente ser mais ou menos como todo mundo, é só a gente pensar mais ou menos como todo mundo pensa.

 

Alaíde acorda com uma frase na cabeça, não há fracasso pior do que o sucesso errado.

 

Hoje é o dia do casamento de Lúcia. O vestido está no quarto de Alaíde, há alguns últimos ajustes a ser feitos.

 

Ela tira o vestido do suporte, o leva ao banheiro e o joga na banheira. Despeja uma garrafa de álcool e risca um fósforo. Depois, recolhe os restos carbonizados de tecido e os joga no cesto de lixo, junto com os papéis com restos de merda raspados do cu de dona Lígia, seu Gastão, Lúcia, talvez até do Estelionato.

 

Volta ao quarto, abre a porta do armário e se olha num espelho de corpo inteiro. Fazia cinco meses que não via a própria imagem, inclusive tendo aprendido a escovar os dentes às cegas.

 

Alaíde se enxerga, agora, como nunca se enxergou antes.



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APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta) eduardo haak, 2018 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)