CARTAS ANÔNIMAS, Eduardo Haak

É a segunda carta anônima que recebo. O envelope é o mesmo da primeira, borda verde e amarela com um retângulo azul no canto esquerdo que diz, par avion. Dentro, de novo apenas uma nota de um real. Abro a gaveta da escrivaninha e pego a carta anterior. Comparo as cédulas e tento estabelecer alguma relação entre ambas. Olho os envelopes, o carimbo é da mesma agência dos correios, embora as postagens tenham acontecido com a diferença de uma semana. Ponho as cartas na gaveta, levanto-me e vou à janela.

 

Está um sol de arrebentar os tímpanos, como Elenice falava. Elenice foi a única mulher bonita que conheci que tinha senso de humor. Isso, ser engraçada, é uma estratégia mais comum para mulheres feias e enxundiosas que têm intenção de agradar. Sinto falta de Elenice, uma mulher sem tolice ou cafonice. (Tenho compulsão por rimas, o sério Eleutério curou o climatério com terra de cemitério, etc.) Afasto-me da janela e vou ao quarto trocar de roupa, pois tenho um trabalho para fazer.

 

A hermenêutica ou a interpretação desse tipo de carta anônima que venho recebendo tem uma regra fundamental, que é não se deixar cair na armadilha da lógica (porque uma hipótese é lógica necessariamente é verdadeira, etc.). As hipóteses são sempre infinitas e nada é mais debilitante do que a paranoia para profissionais como eu, do setor de inteligência. As duas cartas até agora querem dizer apenas que alguém sabe onde eu moro e por algum motivo decidiu me pôr a par disso.

 

Pego o carro e sigo pela Raposo Tavares.

 

Percorro cinquenta quilômetros até o posto onde o caminhão que vou monitorar deve parar para abastecer. Segundo o informante, sua carga é de extintores de incêndio, em alguns dos quais os traficantes esconderam pasta base de cocaína. Entro no restaurante, me sento a uma mesa e peço café. Vejo que na parede oposta há um painel com fotografias e vou até lá ver: uma dupla sertaneja abraçada a um sujeito que deve ser o dono do posto; um artista da TV de cujo nome não me recordo; uma capa de disco autografada. (Às vezes imagino a situação: fulano pede autógrafo para sicrano; sicrano rabisca o papel e o devolve ao fulano, que então rasga o autógrafo na cara do sicrano.) Volto à mesa e o garçom chega com o café. Espero cinquenta minutos e passo uma mensagem para o meu superior, dizendo que o caminhão ainda não apareceu. Imediatamente ele responde que devo voltar a São Paulo e aguardar novas instruções.
Penso em ocupar o resto da tarde indo até a cidade de Minas onde meus avós maternos moravam, eu soube que na casa que era deles e onde passei quase todas minhas férias de infância funciona hoje um bordel. Tenho certa fixação com lugares que frequentei na infância e adolescência. Por exemplo, apesar de morar em Vila Clementino eu voto na Mooca, escolhi essa zona eleitoral só para poder entrar no colégio onde fiz o que na minha época era chamado de primário.

 

Dirijo duas horas até a cidade mineira, que ainda consigo reconhecer. Paro o carro em frente à casa, toco a campainha, uma mulher albina cujo apelido é Sivuca atende e me conduz à sala (que eu acho decepcionantemente pequena, lembrava-me dela como um espaço gigante, inabarcável). Na sala cinco ou seis mulheres estão sentadas, então converso com a dona do estabelecimento, sem dizer que ali foi a casa de meus avós. Vou para o quarto com uma mulher mais para madura que se chama Bárbara. Quando estou na cama e a observo tirando a roupa percebo que a escolhi porque ela é parecida com Elenice (beleza, senso de humor, etc.).

 

A maior burrada que eu fiz foi romper com Elenice, beleza somada a senso de humor, uma rara combinação. Eu achei que estava cansado de suas brincadeiras, que precisava de uma namorada séria, etc. Rompemos, então arranjei uma namorada sisuda e em pouco tempo estava enjoado de sisudez. Escrevi algumas vezes para Elenice, mas ela não respondeu. Eu supus que ela não fosse ficar tão magoada, mas pelo jeito ficou, é isso, bem-feito pra mim (bem-feito, beija a bunda do prefeito, vai você que tem mais jeito, essa rima não é minha, quando eu era moleque se alguém dissesse bem-feito ouvia como resposta beija a bunda do prefeito, e então dizia de volta, vai você que tem mais jeito).

 

Chego de volta a São Paulo já de noite, tomo banho e me deito no sofá da sala. Ligo a TV e tento me distrair, mas estou pensando com certa apreensão nas cartas. O que será que quer dizer uma, aliás duas, duas cartas com uma nota de um real dentro? A nota de um está fora de circulação há uns quinze anos. Será que alguém quer me colocar fora de circulação? Repasso os casos em que trabalhei de seis meses para cá. Os criminosos de hoje não costumam ser sutis ou alegóricos, suas ameaças são diretas, vou estuprar sua mulher na sua frente, seu corno filho da puta, vou arrancar os olhos da sua filha e fazer você comer, etc. Nota de um real.
A campainha toca e meu corpo tem uma reação que me faz murmurar, músculo cardíaco. Levanto-me, abro uma gaveta e pego minha pistola, uma Jericho nove milímetros, israelense. Vou até a porta, olho no visor, é uma mulher que não reconheço, penso que podia ser a Elenice, voltando, perdoando, se reconciliando comigo. (A rima mais banal é aquela que usa verbos no tempo infinitivo, amar, sonhar, etc., mas a rima de gerúndios é tão horrorosa quanto.) Abro a porta com a devida precaução, então reconheço a mulher, é a síndica, Luciene. Síndicas em geral são mulheres feias, velhas, amarguradas, mas Luciene é jovem e atraente. O que pode levar uma garota dessas a querer exercer uma função tão rançosa quanto a de síndico de prédio? Ela pede desculpa pelo horário e me avisa que haverá amanhã uma reunião para ser discutida a instalação de uma antena de celular no terraço, o que diminuirá o valor do condomínio, que é importante que eu vá, que as últimas reuniões têm tido baixa adesão (como uma síndica gostosa dessas?, cadê os homens do edifício?, penso). Digo que provavelmente irei, sim, Luciene agradece e fecho a porta.

 

O que me levou a ser policial? O princípio da realidade? (Realidade, real, o nome da moeda brasileira, real, um real.) Me formei em psicologia, aluguei uma sala e durante os quase dois anos em que tentei trabalhar como profissional liberal consegui apenas seis pacientes, pra você dar certo como analista você precisa ser judeu de Higienópolis, não um vira-lata filho de pai judeu e mãe mineira como eu, estudei um ano no I. L. Peretz, mas era chamado o tempo todo de goy e cheguei a levar uma surra de uns moleques que queriam ser o Menachem Begin quando crescessem para explodir o King David Hotel e expulsar os ingleses de Jerusalém. (Bando de terroristas sionistas, como disse aquela atriz na entrega do Oscar.)

 

A reunião de condôminos tem mesmo baixíssima adesão, estão só eu, a dona Célia, que mora no 71, além da Luciene. Devido a essa escassez de moradores nada poderá ser decidido acerca da antena de celular, então a reunião é cancelada, dona Célia do 71 se levanta e a acompanho até o elevador, obrigada, meu filho, você é um anjo. Luciene diz que quer me mostrar uma planilha que está em seu computador e vou com ela até seu apartamento. Ela diz para eu me sentar no sofá, pergunta se quero beber algo e volta do quarto trazendo o computador. Luciene se senta a meu lado no sofá e roça bastante o cotovelo em meu braço enquanto me explica que valores são aqueles lançados na planilha. Há um momento em que a excitação criada por aquela proximidade e por aquele atrito eventual do cotovelo explode, então beijo Luciene e me deito sobre ela e inalo profundamente a parte lateral de seu pescoço, logo abaixo da orelha, Luciene se levanta e me puxa pela mão, venha, chegamos à área de serviço, então ela tira a blusa e abaixa o sutiã e se debruça sobre o tanque de lavar roupas, indicando que eu a agarre por trás. Abaixo as calças dela, depois as minhas e entro em Luciene, que abre a torneira do tanque, deixando a água vir com toda a pressão, eu gosto de sentir esses respingos nos meus seios e no meu rosto, ela diz, de modo gemido e entrecortado.

 

Passo quatro dias fora de São Paulo, às voltas com o caso dos extintores de incêndio que supostamente escondiam pasta base de cocaína. Mas a informação do xis-nove era improcedente, todos os mil e quinhentos extintores carregados no caminhão foram testados e estavam limpos, em noventa por cento das vezes a polícia trabalha assim, quase às cegas ou baseando-se em pistas falsas, informação, contrainformação, desinformação, nosso trabalho às vezes parece teatro do absurdo ou filme daquele diretor americano de filmes esquisitos, o David Lynch.
Voltando para casa havia mais uma carta anônima à minha espera, dentro da qual havia a fatídica nota de um real, só que dessa vez estava escrito no verso, dia nove, no baile de máscaras do Charles Edward Bar, não será difícil me reconhecer. A mensagem estava escrita à máquina. Então me lembrei do caso de um delegado que acabou sendo afastado a partir de um trabalho nosso, o sujeito trabalhava numa delegacia tão precária, com computadores tão velhos que uma hora foi necessário voltar a usar as máquinas de escrever que estavam largadas há anos no almoxarifado. (O xerife e o almoxarife patife que dorme no esquife.) O que esse cara podia estar querendo comigo? (Se é que era ele, máquina de escrever, etc.) Que capricho era esse agora?, cartas anônimas, decifra-me ou te devoro, baile de máscaras, etc.

 

Meu telefone faz barulho de mensagem, olho no visor e vejo, Luciene (Síndica), respiro fundo e penso, bem-feito, quem manda comer vizinha, agora você vai ter uma estálquer grudada na sua porta, etc., então leio sua mensagem, olá, Roberto, tudo bem? Minha mensagem será curta e espero que você a compreenda. Por razões que não tenho por que expor a você não poderei mais ter contigo o tipo de contato (sexual) que tivemos em meu apartamento. Você é um homem muito interessante, inteligente e educado, creio que em outro contexto poderíamos nos relacionar, mas isso (ou mesmo relações sexuais casuais) para mim nesse momento está fora de cogitação. Não acho necessário fazer esse pedido, de que você seja discreto acerca do ocorrido, mas de qualquer maneira o faço. Obrigada (e desculpe se frustrei alguma expectativa sua). Ler essa mensagem da Luciene Síndica não sei por que me dá vontade de escrever mais uma vez para Elenice (bela e engraçada), o que faço, mesmo sabendo que ela não vai responder.

 

Penso em que máscara usarei para ir encontrar meu correspondente anônimo no baile. Pesquiso uns sites e vejo um que diz, máscaras sob medida, fazemos do personagem que você quiser, inclusive de você mesmo! Ao lado a foto de um sujeito e a máscara feita a partir de suas próprias feições, um trabalho de fato notável, ficou parecendo uma boa caricatura. Ligo para a loja e marco um horário para fazer as fotos do meu rosto e a modelagem do crânio. A máscara fica pronta em menos de uma semana.

 

Chego cedo ao Charles Edward Bar, subo ao mezanino e fico sentado numa poltrona, pensando no quanto a curiosidade é propulsora das ações humanas. (Quem será o autor das cartas, afinal de contas?) A casa ainda está vazia, um sujeito com uma máscara do Bob Esponja passa por mim com jeito de quem está procurando o banheiro (dentuço aloprado vira personagem de desenho desanimado). Uma bartender com uma caneta e um bloco pergunta se quero beber algo, digo que quero um Jack Daniel’s sem gelo.

 

Desço e vou à varanda que dá para a Rua Miriti, onde as pessoas saem para fumar. Vejo que os seguranças têm detectores de metal, portanto é improvável que seja lá quem for que eu vá encontrar aqui consiga entrar portando arma. Uma loira alta segurando uma taça acende um cigarro e fica fumando num canto, como se estivesse escondida. Um gordinho que usa a camisa por dentro das calças sai e a procura, ah, achei você, ho, ho. Volto para dentro, subo, mas a poltrona em que estava foi ocupada. Desço e fico encostado no balcão, observando um candelabro com velas derretidas. Em meia hora o lugar enche bastante, mas não há muitas pessoas usando máscaras, o que me decepciona um pouco, acho interessante esse negócio de rostos incógnitos.

 

Saio de novo à varanda e experimento ficar com a máscara por uns dez minutos. Será fácil me reconhecer. Nenhum rosto ou máscara que vi até agora me lembrou qualquer coisa conhecida. Pode ser que o autor das cartas tenha blefado e não irá se identificar para prorrogar sabe-se lá por quanto tempo esse jogo de gato e rato. Uma mulher chata (embora com peitos muito atraentes) puxa conversa perguntando onde fiz essa máscara do meu próprio rosto, impressionante, ficou igualzinho, quer dizer, você é bem mais bonito que a máscara, rá-rá, então ela fala de um lugar que faz uns bonequinhos de resina baseados em nosso corpo e feições, é sério, eles tiram umas quatrocentas fotos nossas, de tudo que é ângulo, o resultado geralmente é estupendo, minha cunhada fez dos quatro filhos, então imagino uma perua idiota mostrando para todo mundo os bonequinhos dos filhos. Uma amiga da chata dos peitos bons aparece e se senta ao lado dela e acende um cigarro e faço um gesto apontando para meu nariz e laringe que pode ser entendido como tenho rinite alérgica, vou até ali enquanto ela fuma, então me levanto e vou até o parapeito e fico ali, forçando meu olhar para frente para desestimular qualquer aproximação, mas vejo de canto de olho um vulto se aproximando e penso, que droga, a mulher não percebe que não estou a fim?, o vulto se encosta no parapeito e o ouço dizer, está uma lua de arrebentar os tímpanos, não está? Viro-me na direção da voz e vejo uma mulher usando uma máscara com aquele rosto que estampa as cédulas de um real, um rosto feminino com feições helênicas, sim, uma vez eu disse a Elenice que o rosto dela parecia uma efígie. Elenice, bela e cômica, tira a máscara, me sorri e pergunta, gostou da surpresa? Respondo que sim, muito. Ela diz, eu vou lá dentro pegar uma bebida, você me espera? Digo que sim, lógico que sim. Ela diz, não vá embora, tá? Respondo, fica tranquila, é claro que não vou.



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APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta) eduardo haak, 2018 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)