Fabiano tem 651 metros quadrados.
Renata, que tem 57 metros quadrados, é jornalista e é casada com um rapaz que escreve livros. É a primeira vez que Renata vai ao apartamento de Fabiano.
O apartamento tem poucos móveis. O único objeto na sala onde agora estão é uma caixa acústica Bang & Olufsen, cujo design é uma mistura de antena parabólica com poltrona de pé palito. A música que está tocando é o Trio para cordas, opus 45, de Arnold Schoenberg, gravação do Juilliard Quartet, 1993.
Espaços imensos deixam certas pessoas sobre-expostas. Se fosse obrigada a dormir ali, Renata, 57 metros quadrados divididos com o marido, procuraria um armário onde se abrigar.
Quer dizer que esse é o lugar onde as pessoas são incapazes de mentir, Renata diz, rindo, tentando disfarçar um princípio de pânico.
Fabiano responde que sim.
Renata pergunta a Fabiano se ele tem complexo de Deus, aquele diante do qual é impossível esconder qualquer coisa. A pergunta ilumina a intenção de Fabiano, embora não a explique por completo. Ele tira uma embalagem cilíndrica do bolso, onde há um charuto Romeo y Julieta.
Como é que eu começo?, Renata pergunta.
Como você quiser.
Posso andar enquanto eu falo?
Pode, claro.
O.k. Bom, eu estou aqui, antes de mais nada, porque odeio meu marido. Não é patético?, uma coisa tão ínfima quanto o enfado conjugal ter se tornado o centro de minhas inquietações?
Hum.
Pois é. De certa forma eu virei uma dessas mulherzinhas que reclamam do marido. Que se metem em discussões de relação. Que eventualmente têm casos extraconjugais e que defendem o aborto no Facebook. (Pausa.) Ele acha que eu enjoei dele porque ele não é ambicioso. E não é nada, nada disso.
Fabiano acende o charuto.
O problema, o problema fundamental, é que eu não me tornei a mulher que eu pretendia ser. Nunca achei o que eu procurava. Nem nele, nesse cara com quem me casei, nem em coisa alguma. Entende isso?
Claro.
Renata para de andar e fica na ponta dos pés. Estende o tronco e depois os braços, como se estivesse se espreguiçando, se rendendo ou apenas exibindo sua notável compleição. Fica assim por um, dois, três, quatro, cinco, então se devolve a uma atitude corporal não tensionada.
Sabe... outro dia me veio à cabeça uma lembrança. Ainda estou meditando a respeito, mas acho que ela é uma chave para um monte de questões minhas. Foi numas férias de julho, em 96. Eu estava com minha mãe, meus irmãos e uns primos na nossa casa de praia, na Barra do Una. Fazia pouco mais de um ano que meu pai tinha morrido. Aliás, acho que essa foi a primeira vez que fomos para a praia sem ele. Os dias estavam bem frios, mas limpos, sem nuvens. Meu irmão mais velho ainda não tinha idade para dirigir, mas minha mãe emprestava o carro para ele. À noite sempre passeávamos, ouvindo umas fitas de jazz ou daquelas bandas grunges dos anos noventa. Aí teve uma noite que a gente estava jogando baralho e meu irmão disse que conhecia um método de adivinhar o futuro lendo as cartas. Só estávamos nós, os jovens, minha mãe tinha ido dormir. E a gente ficou lá, fazendo perguntas pra ele, meio levando a coisa na palhaçada, meio levando a sério. Lembro bem da toalha verde, de feltro, que cobria a mesa, um cinzeiro, o lustre baixo. Nós todos fumando, sem a preocupação de que um adulto fosse dar bronca. Minha mãe tomava os remédios dela ficava fora do ar até de manhã.
Hum.
Eu não sei se eu conscientizei isso na hora, provavelmente não, mas tenho certeza de que aquele foi o momento inicial, o primeiro vislumbre de um pensamento que depois me perturbou muito.
Qual?
Eu percebi que aquela sensação de liberdade, prazer e aconchego que eu estava sentindo por fumar cigarros numa noite de inverno tinha muito a ver com o fato de meu pai estar morto.
Claro, quando pensei nisso nesses termos, com suficiente clareza, eu me achei monstruosa. Eu amava meu pai, como podia pensar uma coisa dessas? Como eu podia sentir uma espécie de euforia com o fato de ele ter morrido?
Hum-hum.
Então essa sensação de liberdade e euforia deu lugar à angústia. Percebi como uma pessoa morta pode ter sua presença potencializada pela ausência. Por paradoxal que isso possa parecer, fiquei convencida de que você pode fazer coisas escondidas de um pai vivo, não de um pai morto.
Fabiano solta um riso curto, nasal, de assentimento.
Essa sensação tinha épocas que recuava um pouco, depois voltava. Aliás, um adendo: eu nunca contei essa história para o meu marido.
Por quê?
Não sei. Talvez porque tem coisas que simplesmente não contamos para certas pessoas. Talvez porque a simples presença de certas pessoas obstrua, obscureça partes significativas de nós. Pode ser que, mesmo que eu tivesse a intenção de contar, na presença dele esses pensamentos todos me escapariam, num lapso.
Entendo.
Então. Como eu estava dizendo, esses pensamentos obsessivos com a presença, ou melhor, com a onipresença do meu pai, iam e voltavam. Quando eu tinha dezoito anos, no primeiro ano da faculdade, comecei a namorar um sujeito. Depois de um tempo ele passou a dormir em casa. Ele dormia num quarto de hóspedes, escritório, depósito de tranqueiras. Nós transávamos lá, quando minha mãe e meus irmãos não estavam, ou estavam dormindo. Ridícula essa palavra, transar. Mas era exatamente isso que eu fazia com aquele rapazinho, transar, um desses rapazinhos de primeiro ano de faculdade que vivem dizendo mó, mó legal, mó estranho, mó não sei o quê. Um dia ele perguntou quem era aquele homem no quadro pendurado na parede. Eu disse que era meu pai.
Hum.
Minha mãe tinha encomendado um retrato do meu pai para um pintor. Aliás, esse era o segundo quadro, o primeiro tinha ficado tão ruim que minha mãe jogou o quadro no lixo. Nesse aí que foi o primeiro o artista quis dar uma de Vincent Van Gogh e meu pai acabou ficando com cara de demônio.
Fabiano ri.
Aí o rapazinho disse, pô, mó estranho a gente aqui com esse quadro, parece que ele está vigiando a gente. Eu sei que a partir daí eu entrei numa queda de braço com aquele símbolo da onipresença paterna. Eu sempre transava olhando para o quadro, desafiadora, como se dissesse, você não vai me inibir.
Renata para, os braços cruzados atrás da nuca, o peso do corpo apoiado na perna esquerda. Ela parece olhar para o chão como se tentasse descobrir um modo de medir algo que talvez seja imensurável.
É, acho que é isso, Renata diz.
Hum-hum.
E aí?
E aí o quê?
Sei lá. Você acha que eu ainda tenho alguma chance de me tornar a mulher que eu sempre desejei ser?
Acho que não.
Hum. E você, será que você é o homem que eu procurei minha vida toda e nunca encontrei?
Não.
Não?
Não, não sou.
Renata desvia o olhar para uma das amplas e muitas e variadas janelas do apartamento e depois olha para o chão. Fabiano transfere o Romeo y Julieta da mão esquerda para a direita. Renata então levanta os olhos para Fabiano e diz, fazendo o primeiro movimento de uma sequência de movimentos que culminará com sua nudez, a sinceridade é voluptuosa, não
Fabiano diz,
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