Fiz aniversário e minha namorada me deu um vale-caricatura, um artista inventou esse negócio, você chega ao ateliê com o vale e ele te caricaturiza.
Ir até o Ipiranga em troca de um desenho?, pensei, mas acabei ficando curioso.
Meu pai dizia que mesmo as pessoas que dizem não ser curiosas sempre têm curiosidade sobre si, especialmente a respeito de como os outros as veem.
Nunca ninguém havia feito minha caricatura.
O artista me recebeu, firmeza aí?, só me dá dez minutinhos que estou terminando um job.
Esperei folheando uma Veja, então ele me chamou e pediu para eu me sentar num banco amarelo, de plástico.
Enquanto me desenhava fiquei tentando me lembrar com quem ele se parecia, até que consegui, era um ator antigo da TV, um que às vezes trabalhava nos Trapalhões.
Sabe como descobri esse meu capacitamento artístico, sir?
Não, respondi.
Foi na Santa Marcelina. Fiz um ano de pussyland, depois o dinheiro extinguiu-se, como os dinossauros, e as freirinhas não me deixaram fazer rematrícula enquanto os débitos não fossem quitados. Vê de pode. Aí existia uma colega, a Jussara, feia de corpo, bonita de cara, que decidiu me dar uma força e pagou por uns rabiscos que fiz dela. O caso é de taquicardia, tum-tum-tum, mas ninguém, ninguém mesmo desenhava porra alguma lá na facul das freirinhas mercenárias de cristo. Aí, no mouth a mouth e graças à vaidade e a concupiscência das mulheres, meus desenhos caricaturais foram ficando muito famosos. Eis o vosso aqui, sir.
Ele me estendeu um papel.
Gostei do desenho, apesar de minhas orelhas terem sido ressaltadas de modo exagerado, mesmo para uma caricatura.
Voltei para casa pensando em como Regina teve a ideia de me dar um presente como aquele.
Ela deve ter ouvido falar de um artista que estava à beira da mendicância e sentiu pena dele. Outro dia ela fez uma reunião em casa para que uma amiga desempregada vendesse perfumes.
Regina é jogadora de vôlei e tem uma fragilidade num dos joelhos que logo a fará parar de jogar.
Quando isso acontecer, provavelmente ela voltará a morar com os pais, em Jundiaí. Talvez se especialize em fisioterapia e, com alguma sorte, talvez até consiga arranjar emprego num spa.
Talvez o momento de eu chutar Regina da minha vida tenha chegado. Talvez eu devesse arranjar uma mulher nova, de quem eu possa me alimentar do vigor da juventude. Velhice é um troço mais contagioso que aids.
As mulheres acusam os homens de egoísmo, mas quando um homem abranda o egoísmo elas perdem a capacidade de adoração, passam a sentir ternura e piedade, e isso quer dizer desinvestimento libidinal, africa addio, the end.
Fui para o Dive.
Sempre achei aquele neon amarelo numa parede de tijolos, great times are coming, um vaticínio.
Lá estava Gabriela, sentada num sofá, de pernas cruzadas, guardiã do próprio limiar contra homens indecisos e fracos, olá.
(Olá é uma espécie de tiro de meta que cobramos no campo da sedução.)
Saímos do Dive e fomos a um motel. Sempre que vou para a cama com uma mulher pela primeira vez tenho uma sensação de ventania.
Voltei para casa, dormi por onze horas e acordei, não sei por que, pensando na caricatura.
Fui pegá-la, observei-a e então tudo ficou claro.
Tum-tum-tum, taquicardia.
Gabriela, 1993, guardiã do próprio limiar, não poderia salvar Gustavo, 1975, do que aquele desenho representava, Rogério Ceni errando pênaltis, Daniel Craig errando tiros, Regina errando saques.
Sim, aquele desenho me deu uma certeza bruta de que não era mais o jovem que supunha ser.
Como um desenho pode ser tão revelador?
Tomei banho, fui tomar café no Le Pain Quotidien, telefonei para Regina e caiu na caixa postal, liguei de novo e caiu de novo na caixa postal, eu estava começado a me sentir desesperado e precisava dizer imediatamente a Regina que a gente precisava se casar e que eu a amava mais do que todas as coisas. Eu não sabia que envelhecer é tão súbito, que é como estar num desses calmos exercícios de evacuação feitos pela brigada de incêndio e de repente se ver em pânico ante uma combustão real e fora de controle.
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