O amor que não é posto à prova é um amor vacilante, assim como é duvidosa a virtude que desconhece o vício. O amor, mais do que sentimento, é compromisso integral com o ser amado. Eu amo Montserrat, apesar do tempo que passou e das modificações impostas por ele.
Quando nos casamos Montse estava alguns quilos acima do peso, o nervosismo causado pelos preparativos das bodas levou-a a comer muito. Há pessoas que buscam atenuar suas angústias comendo, outras bebendo, outras tomando drogas. Minhas inquietações eu sempre aplaquei com sexo, atos vicários praticados com mulheres de programa, algo que me dava uma euforia vazia que me deixava muito infeliz depois.
O acúmulo de adiposidade de Montse, contudo, não parou com a acomodação de nossa rotina de casados. Em menos de um ano ela havia engordado trinta quilos, suas roupas não cabiam mais, então ela foi a um desses médicos de regime. Foi a primeira de uma série de dietas fracassadas que a vi fazer. Seguiram-se a isso internações em spas, terapias com psicólogos, outras dietas, Montse emagrecia um pouco e acabava engordando tudo de novo e cada vez mais.
Sua capacidade de locomoção acabou sendo afetada e ela não saía mais de nosso apartamento. Eu ainda tentava fazê-la se sentir desejada lhe exibindo ereções e sussurrando em seus ouvidos palavras blandiciosas, não que Montse me despertasse desejo, as ereções eu obtinha artificialmente com aquele remédio, Montse tentava corresponder, talvez percebesse meu esforço e buscasse se esforçar também, o fato é que depois de um tempo acabamos desistindo, sabíamos que era tudo encenação.
Levei o prontuário de Montse a um médico que me disseram ser cobra no assunto, o doutor Heliogábalo. Enquanto folheava o calhamaço ele foi me fazendo perguntas, perguntas aparentemente despropositadas, você tem aflição de papel alumínio?, você joga futebol de botão?, até que disse, sua mulher não tem problema de tireoide, não tem disfunção hormonal, não tem trauma de vida passada, não tem trauma de vida presente, quer saber qual o problema da sua mulher? O único problema? Ela come muito.
Instalei uma câmera escondida no quarto. Montse não conseguia mais sair de lá, as portas de nosso apartamento eram todas estreitas, as janelas também, os apartamentos de hoje são todos umas merdas. Eu queria construir uma cama de alvenaria, a única capaz de aguentar o peso de Montse, mas o síndico não autorizou. Montse então passou a dormir só no colchão. Pus um vaso sanitário de concreto no quarto e uma acompanhante para ajudá-la enquanto eu passava o dia fora, trabalhando.
O que as gravações revelaram confesso que me surpreendeu. Sempre que fazíamos as refeições juntos Montse comia de modo frugal. Mas na minha ausência ingeria o tempo todo quantidades tremendas de doces, salgados, embutidos. Não conseguindo mais sair do quarto, devia dar dinheiro à acompanhante para que ela fosse comprar esses itens todos e depois jogasse as embalagens fora.
Despedi a acompanhante e tirei licença no trabalho. Revistei todo o quarto e coloquei num saco de lixo tudo o que encontrei de comestível. Montse, apesar da aflição de se ver privada de suas reservas calóricas, pareceu conformar-se com minha atitude. Eu estava determinado a resolver de uma vez por todas aquele problema. O amor é um compromisso integral com o ser amado, na riqueza ou na pobreza, na saúde ou na doença, na esbelteza ou na obesidade. Agachei-me para espiar de novo se não havia mais nenhum alimento escondido debaixo do colchão, então Montse se deixou cair sobre mim e me manteve debaixo de seus quase trezentos quilos até eu entrar em óbito por asfixia mecânica. Quando me percebeu inerte, levantou-se, pegou o saco de guloseimas e foi se sentar. Ficou ali, sentada no vaso sanitário de concreto, devorando marzipãs e olhando para o meu cadáver.
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