INCESTO, Eduardo Haak

Meu pai quando jovem declarou ter feito sexo com a própria mãe.

 

A entrevista saiu num jornal de grande tiragem, o que fez dele uma das personalidades públicas mais discutidas da época. Ele era então o Nono, vocalista e líder da banda pós-punk Os Numerais.

 

Embora eu já fosse nascido, não tenho lembranças dele assim, tocando, com o cabelo laranja, etc. Os Numerais acabaram em 1990, depois ele formou outra banda, Henrique e os Cimentos Ilícitos, mas esse segundo grupo não teve sucesso nenhum.

 

Conheci a história do incesto aos doze anos, mais ou menos na época em que voltamos a conviver. Meu pai passou anos se tratando, dependência química, surtos psicóticos, etc. Morei com meus avós, pais dele, durante esse tempo todo.

 

Aliás, fui registrado como filho natural de meus avós, por razões que não vêm ao caso aqui.

 

Estou agora no escritório do doutor Hermógenes, advogado especialista em direito de família e sucessões. Como meu pai é interditado judicialmente e sou seu tutor, todos procedimentos burocráticos relativos à execução do testamento de minha avó correram por minha conta. Ela morreu em agosto, sendo eu e meu pai – legalmente meu irmão – seus únicos herdeiros.

 

Observo, por uma das janelas da recepção, um sujeito que conversa com um dos manobristas do escritório. Ele tem uns quarenta anos e, embora esteja usando um terno de boa qualidade e no geral tenha uma boa aparência, há algo nele que me faz pensar nessas pessoas que de um dia para o outro aparecem pilotando as SUVs da prosperidade súbita e suspeita.

 

Senhor Jonas Negri Filho?

 

Olho na direção da voz, que é da secretária do doutor Hermógenes. Ela me sorri e diz para acompanhá-la.

 

Sou levado à sala do causídico, que me cumprimenta e indica a cadeira onde me sento.
Foi ele, Hermógenes, quem leu há algumas semanas o codicilo de minha avó: eu, Senhorinha Pola Negri, de posse do meu perfeito juízo e livre de qualquer coação, pelo presente instrumento exaro minha última vontade, para determinar o seguinte, dois pontos. O constrangimento com a leitura daquela terrível peça testamentária envolvendo nomes próprios e destinações de objetos pessoais de pouco valor foi contornado por Hermógenes com tato e elegância, ao contrário das testemunhas, que reagiram com um silêncio excitado, ignóbil, cruel.

 

Hermógenes me estende um envelope e diz, está tudo aí dentro, em todo caso confira, se assim desejar. Sua mesa é coberta por um vidro sob o qual há fotos de crianças, adultos, noras, genros, filhos, netos. Hermógenes é um velhão solene que usa abotoaduras e cujo cabelo é tão rígido que dá a impressão de que quebrará se for tocado. Hermógenes é uma trepada ocorrida em 1953 que se locomove e fala, ambulare et loqui.
Estive pensando, sabe?, ele diz, pressionando um lápis com uma guilhotina de cortar charuto.

 

Fico olhando para ele, esperando o que vai dizer.
Eu leio a bíblia, sabe?, todo dia, desde os meus longínquos vinte e dois anos. E não me canso de admirar aquelas genealogias.

 

Hermógenes empunha o conjunto lápis-guilhotina como se fosse uma arma, um revólver que estivesse contemplando antes de levá-lo à têmpora.

 

É, aquelas genealogias. Adão gerou Sete, que gerou Enos, que gerou Cainã, que gerou Maalaleel, que gerou Jerede, que gerou Enoque, que gerou Matusalém, que gerou Lameque, que gerou Noé, que gerou Sem, Cão e Jafé.

 

Ele deixa de torturar o lápis, deixando-o cair sobre a mesa, e diz, bem, bem, muito bem. Talvez você esteja querendo saber aonde quero chegar com isso tudo.

 

Faço um gesto que talvez signifique sim-estou-muito-curioso-etc.

 

Pois bem. O que eu quero dizer é que no fundo não há, entende?, não há separações. Não existe o nós e o vocês. Somos todos... figurinhas do mesmo álbum.

 

Despeço-me dele com um aperto de mão. Saio de sua sala e atravesso a recepção, onde a recepcionista está tendo uma conversa blandiciosa com aquele sujeitinho da SUV e do terno invocado.

 

Chego à rua.

 

Respiro fundo algumas vezes, tiro do bolso meus óculos de sol, limpo as lentes na barra da camisa. Pego o telefone para chamar um táxi, mas antes decido caminhar um pouco.

 

Talvez eu vá até onde ficava nossa antiga casa, outro dia vi pelo google street view que ela foi demolida. Desde 2003 não passava por essa região.

 

Ainda temos alguns parentes aqui. Nossa família é cheia de epiléticos, esquizofrênicos, oligofrênicos, meu pai não foi o primeiro caso de loucura. Acho que é por isso que minha mãe-avó sempre foi tão preocupada comigo, tão atenta a qualquer oscilação de humor que eu tivesse.

 

Chamo o táxi e decido ir para a Paulista. Desço do carro e ando até um hotel que sei que tem uma tabacaria, onde compro uma guilhotina de cortar ponta de charuto. Trata-se de um objeto de dez centímetros que tem no centro um orifício por onde se deslocam duas lâminas, em sentidos opostos. As lâminas são acionadas por um disparador e são mantidas em suspenso por uma trava. Vou ao banheiro ali do lobby, entro numa das cabines e desço as calças. Penetro meu pênis no orifício da guilhotina, orifício que é mais largo que o da peça do Hermógenes, o advogado. Fecho as calças e saio da cabine e caminho na direção do espelho. Não me esquivo do olhar que a imagem refletida fixa em mim, um olhar mau, cossanguineo, cortante.



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APARTAMENTOS, um livro de Eduardo Haak

apartamentos (contos, ficção curta) eduardo haak, 2018 (Para navegar pelo livro, use as setas do canto superior esquerdo.)