Estou na praça de alimentação do shopping, almoçando. Observo um funcionário trepado numa escada, pondo um enfeite de Natal na parede. Ao esticar um dos fios, ele leva um choque elétrico na mão. Afasta-se do enfeite de modo abrupto, sacudindo a mão, depois fica olhando para ela. O sujeito vê que o observo, então termino de comer, me levanto e vou despejar os restos da bandeja num dos cestos de lixo. Desço um andar, vou caminhando por um corredor e passo por uma loja que mostra na vitrine vários aparelhos de TV. Todos estão sintonizados num mesmo programa e as imagens que surgem nas telas parecem estar levemente dessincronizadas, como se houvesse um pequeno atraso entre a aparição de uma imagem numa tela e noutra. As telas mostram, agora, um carro cuja placa tem as letras VLT, volt, voltagem.
Lembro-me de uma notícia que li outro dia, que nos presídios americanos muitos condenados à morte têm preferido a execução na cadeira elétrica em vez da injeção letal, que em várias ocasiões falhou por falta de um dos componentes químicos, o que deixou os condenados agonizando por um tempo terrivelmente longo, sendo que um deles até sobreviveu à injeção. Agonizar, do grego agón.
Tenho uma empresa com dezoito funcionários e hoje estou sentindo a agonia da escolha, pois tenho que demitir alguém. A firma está no prejuízo, mesmo com o incentivo fiscal que tenho, mesmo com a contenção de gastos que venho fazendo há meses. A coisa realmente chegou no limite e agora só fazendo corte de pessoal. Estou entre dois funcionários, os dois são equivalentes, ambos trabalham direitinho, não faltam ou atrasam, nunca vieram trabalhar bêbados. Nenhum dos dois é especialmente qualificado, embora isso não seja um problema, as coisas que eu fabrico não exigem grande habilidade técnica ou especialização de mão-de-obra. Posso dizer que tenho uma relação razoavelmente cordial com ambos. Qual deles, então, eu vou demitir?
Não tem como se demitir alguém de forma descontraída, por exemplo, chamo o funcionário à minha sala, ponho uma máscara de presidente americano e digo a ele, tchau, tigrão, você tá fora, demitir é sempre tenso, o funcionário sempre se sente injustiçado, por mais que você explique racionalmente a situação, ele, o funcionário demitido, sempre te vê como um sacana filho da puta. Meu pai era gerente numa multinacional e uma vez levou um soco ao mandar embora um vendedor. O sujeito acabou sendo demitido por justa causa, por conta da agressão, e então jurou que ia dar um tiro no meu pai. Outra vez um outro funcionário que meu pai fora incumbido de demitir teve um descontrole emocional e defecou nas calças enquanto implorava, de joelhos, que meu pai não fizesse aquilo, que os filhos dele não iam ter o que comer, etc. Não sei qual seria a reação dos meus dois funcionários, de um e de outro, ao me ouvir falar em demissão. O são-paulino parece ser um sujeito tranquilo, o palmeirense também parece, razoavelmente tranquilo, ambos são evangélicos, ambos são pais de uma porrada de filhos, ambos têm por volta de quarenta anos, ambos teriam, sem dúvida alguma, bastante dificuldade para arranjar outro emprego.
Desço dois lances de escada rolante, compro uma lata de pastilhas Altoids e coloco duas na boca de uma só vez. Atendo uma ligação da minha mulher. Ela diz que o carro continua com aquele barulho na suspensão; diz que está com receio de usá-lo; diz que tem que levar a mãe hoje à tarde àquele posto do INSS naquele lugar horrível cheio de viciados em crack; diz que seria um pesadelo se o carro acabasse quebrando justamente lá; diz, portanto, que vai levar a velha de Uber. Entro na fila para pagar o cartão do estacionamento, desço mais dois andares, dessa vez de escada normal, e entro na garagem do shopping. Vou caminhando até o setor H5 e vejo ao lado do meu carro um carro com a placa IOS, Iosif Djugashvili. O primeiro presente que Magali, minha mulher, me deu quando começamos a namorar foi a biografia do Josef Stalin. (Os Gulags, os prisioneiros praticando canibalismo para saciar a fome, etc.) Entro no meu carro, cuja placa é JCN, Jacinto, Jaçanã. Abro o porta-luvas, pensando, e aí, o palmeirense ou o são-paulino?
Tanto um quanto o outro tem uma ficha criminal extensa. O são-paulino cumpriu pena por roubo, extorsão e homicídio, o palmeirense foi condenado por tráfico de drogas, sequestro e também homicídio. Admiti ambos por causa do incentivo fiscal, o governo está dando um bom abatimento nos impostos para quem contrata funcionários que tenham cumprido pena de prisão, a reinserção na sociedade, a chance de um novo começo, etc. Tiro do porta-luvas minha pistola, uma Jericho, israelense, calibre nove milímetros. Observo seu pente e finalmente decido de qual dos funcionários eu vou me livrar.
Meu pai levou um soco daquele vendedor esquentadinho, mas eu levaria um tiro, ou do são-paulino ou do palmeirense, de quem eu demitisse, esses caras não levam desaforo pra casa, essa é a mentalidade deles, não engolir desaforo, portanto vou matar antes. O risco de eu ser incriminado por homicídio é praticamente nulo, bandido que aparece morto é a coisa mais comum que tem. Sim, bandido, não existe ex-bandido, o sujeito vira evangélico, mas isso não significa nada, o sujeito faz mais um filho, o sexto ou sétimo, em sua nova mulher, a quarta ou quinta, e fica falando que se tornou um varão de Deus, mas isso também não quer dizer coisa alguma. Das dezoito pessoas que trabalham para mim, treze são ex-presidiários.
Às vezes penso em pôr fogo na fábrica com todo mundo dentro.
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