Duas vezes por semestre Roberto Nakashima escolhe uma prostituta. Escolher, preferir, eleger, optar, antepor, o que determina nossas preferências é sempre subjetivo. Nakashima, por exemplo, sempre escolhe mulheres com dentes estragados.
Na Rua do Triunfo, em frente a um bar em cujo toldo está escrito lasanha nordestina, Nakashima aborda uma mulher. Ela tem o corpo bem-feito e é mais ou menos jovem. Nakashima a estimula a falar, pois precisa ter certeza de que ela é o que ele está buscando. A mulher, que se chama Luba, diz que atende num hotel próximo dali, mas Nakashima diz que prefere levá-la a outro lugar.
Como alguém pode descuidar tanto dos dentes?, ele pensa, enquanto vão caminhando ao ponto de táxi. Hoje qualquer um vai ao dentista, até caixa de supermercado usa aparelho, os tratamentos baratearam muito. A primeira mulher do semestre passado era usuária de drogas, o que explicou o estado tétrico de sua dentição. Mas essa nova, Luba?, não tem cara de viciada.
O táxi percorre trinta reais e os deixa em frente a uma casa, na Aclimação. A sala dessa casa tem qualquer coisa de impessoal, mesa de centro com revistas, um sofá, o pôster de um quadro retratando um vaso de flores em cuja base se lê Raoul Dufy. (Nakashima sempre achou que esse vaso e esse arranjo floral lembravam a cabeça de sua ex-mulher, Olívia. Ele conheceu Olívia em 2007, quando a viu numa loja em Caraguatatuba comprando envelopes e selos. Ninguém mais escreve cartas, ninguém mais tira fotos com filme, se você disser que vai bater à máquina suas cartas juro que vou acreditar, Nakashima disse. São para o Papai Noel, Olívia respondeu, preciso distrair meus sobrinhos, sou professora de inglês, tenho vinte e seis anos, etc.) Luba, a prostituta com dentes estragados colhida na Rua do Triunfo, pega uma revista da mesa de centro e pergunta que lugar é aquele. Nakashima responde, eu trabalho aqui.
Desde que sua licença profissional foi cassada, há catorze meses, Nakashima tenta consumir seus dias ocupando-se de algum modo. Por exemplo: no dia anterior ao da abordagem da prostituta na Rua do Triunfo ele se ocupou indo ver as meninas treinarem.
Toda quarta-feira à noite, no ginásio poliesportivo perto de sua residência, ocorre o treino de um time de vôlei feminino da segunda divisão. Nakashima sempre os assiste, recostado na arquibancada, às vezes ouvindo músicas em seu tocador de mp3. Aquele esporte tem um efeito relaxante para ele. Nakashima já tentou ver partidas de basquete e handebol, mas não foi a mesma coisa.
A princípio as jogadoras ficaram alvoroçadas com a presença daquele estranho, sempre usando um casaco preto com capuz, pensando que talvez ele fosse olheiro de algum clube da superliga série a. Depois, cogitaram que ele fosse estálquer de alguma delas. Com o correr das semanas, não tendo ele nenhuma vez saído de sua posição de espectador, passou a ser ignorado por todas, menos por Lavínia.
Quando veio de Lins, Lavínia tinha um impressionante percentual de acertos em saques e era tida como uma das jogadoras mais promissoras dos torneios regionais do oeste paulista. Porém, sem nenhum motivo explicável, seu desempenho começou a cair. O técnico já conversou com ela em particular, foi uma conversa conduzida com tato, mas o recado foi transmitido, não vai dar para mantê-la no time se ela não mostrar resultados consistentes.
Voltar para o interior significaria para Lavínia prestar concurso para ser professora de educação física em algum colégio estadual, na hipótese mais ambiciosa trabalhar no salesiano. Como explicar os erros que vem cometendo? Na última partida, elas estavam com seis pontos de vantagem no tie-brake, então ela jogou duas bolas para fora, o time se desestabilizou e acabou sendo derrotado.
Coincidência ou não, essa péssima fase começou quando o sujeito do capuz preto (que ela ainda não sabe que se chama Roberto, tampouco Nakashima) passou a assistir aos treinos. Tem gente que dá azar, que mesmo sem querer emana influências maléficas. Aquele sujeito, Lavínia tem certeza, faz parte desse grupo. Ela até já marcou hora com uma espírita, a mãe Ingrácia, para buscar alguma orientação.
Faz dois anos que o único homem com quem Luba (dentes estragados) tem uma relação contínua é o Fiat Elba, seu protetor. Portanto, ver um mesmo homem pela segunda vez (Roberto Nakashima) é para ela uma grande prova de permanência e confiabilidade.
Nakashima a trouxe de novo à casa na Aclimação. Dessa vez, porém, antes de fazerem sexo, os dois têm uma relação de dentista e paciente. A primeira coisa que Roberto faz em sua boca é a limpeza de tártaro, em seguida substitui uma restauração que estava infiltrada. Luba diz, com um pouco de vergonha, que fazia mais de dez anos que não tratava os dentes. Nakashima orienta-a a mastigar só do outro lado até o dia seguinte. Dá seu número de telefone e diz que se ela sentir dor pode ligar, sua cárie estava bem funda, talvez o nervo inflame, aí vamos precisar fazer canal. Já em casa, no final da noite, Luba fica admirando seus dentes clareados pela limpeza. Roberto. O que aquele homem quer com ela, afinal de contas?
Talvez por alguns fatos relacionados à sua origem, Nakashima é um homem constantemente compelido à caridade. Desde que era recém-formado sempre reservou um dia da semana para atender pessoas que não podiam pagar. As prostitutas em particular sempre lhe inspiraram sentimentos piedosos, por serem pessoas especialmente vulneráveis à exploração e às misérias todas decorrentes disso. Uma vez Nakashima leu uma história em que um sujeito ensinava prostitutas analfabetas a ler. É isso: tratar seus dentes arruinados também é uma maneira de lhes infundir amor-próprio. Não que ele pretenda transformá-las em mulheres supostamente virtuosas, tirá-las da vida, etc. Sua motivação é que quem adquire respeito por si mesmo não cai tão fácil nas garras de tipos manipuladores. Sua outra motivação, essa estritamente pessoal, está ligada a uma tentativa de expiação de o que ele chama de o grande erro, talvez o único erro realmente grave que cometeu na vida.
Lavínia, a jogadora de vôlei, corre e alcança o homem que ela acredita que está causando sua desgraça, na saída do ginásio poliesportivo. O homem, que se apresenta como Roberto, de cara desfaz um pouco as fantasias macabras que Lavínia vinha nutrindo sobre ele. Ele é simpático, não parece um espreitador ou coisa pior. A conversa que os dois têm num café é agradável e fluente. Em todo caso, é melhor não se deixar levar por primeiras impressões. Mãe Ingrácia lhe passou a receita que neutralizará a influência espiritual nefasta do sujeito. O fato de ele ser um homem bonito diminui um pouco seu desconforto com o que a médium prescreveu, já que Lavínia é lésbica e nunca teve qualquer contato sexual genital com homens (embora os filmes pornográficos que eventualmente veja sejam sempre com casais heterossexuais; a categoria que Lavínia mais tem buscado atualmente no site pornhub é a de mulheres fazendo sexo vestidas de noiva).
No encontro na semana seguinte, Lavínia cogita levar Roberto à sua casa, mas tem uma ideia mais simples. Os dois vão ao cinema no carro dela e, na hora de deixá-lo, Lavínia o beija e por fim o masturba. A caixa de papeis absorventes já estava providencialmente no porta-luvas. Ingrácia disse que o papel com a semente masculina devia ser deixado secando por três dias e depois deveria ser queimado. Também deveria estar escrito no papel o nome e o sobrenome do homem em questão. A médium deu cem por cento de certeza de que com isso ela voltará a jogar bem.
Que coisa, hem?, Lavínia diz, secando a mão. Na próxima vez juro que subo a seu apartamento. Aliás, posso te adicionar no Facebook?
Pode, claro.
Qual seu sobrenome?
Nakashima.
Nakashima? Nakashima parece nome japonês. E você não é japonês.
Sou filho adotivo. Meus pais adotivos eram nisseis.
Isso sempre acontece, a garota de programa acabar apaixonada por ele. Luba se empolgou com as ideias de autonomia e autodeterminação que Roberto foi lhe expondo à medida que o tratamento progrediu (catorze cáries, etc.) e começou a querer se afastar de Fiat Elba. Mas em sua fantasia Roberto o substituiria, como protetor e provedor. Um provedor, um marido, sim, um marido bom e generoso, que não a humilharia nem bateria nela, como Fiat faz, principalmente nas fases em que ele está mais propenso aos ataques de epilepsia. Dentista é mesmo uma bela profissão. Meu marido é dentista, ela passou a dizer a si mesma várias vezes por dia, como se ensaiasse as falas de um futuro e desejado papel. Também passou a fantasiar seu nome de casada, Lubanilce Gonçalves de? Nunca conseguiu decifrar o sobrenome de Roberto, escrito naquela letra rebuscada do diploma, e não lhe perguntou para não parecer bisbilhoteira.
Fiat Elba vê na televisão que as mulheres andam insatisfeitas com seus relacionamentos. Os homens não sabem mais lidar conosco, diz uma das debatedoras. O cenário em que a discussão ocorre tem ao fundo o símbolo feminino, um círculo pintado em rosa com uma cruz na parte inferior. Sem-vergonhas de uma figa, pensa Fiat Elba, passando a língua num dente cuja restauração está trincada. Além de estar sem plano de saúde e de seu nome estar no spc, ir ao dentista é uma das coisas que Fiat Elba vem postergando por falta de dinheiro. Sua namorada, Luba, vem ganhando cada vez menos na viração. (Fiat diz que é namorado de Luba, não cáften. Sim, ela banca as despesas de casa, mas isso não é cafetinagem, e sim divisão de tarefas.) Apesar de ganhar cada vez menos, ela, aquela piranha, foi ao dentista. Disse que o cliente ofereceu tratar os dentes dela pra pagar os cachês. Isso acabou gerando uma briga em que ela chamou Fiat Elba de pé de chinelo invejoso.
João liga ao Fiat Elba e diz, cara, vamos dar uma volta, você anda muito tenso, precisa espairecer um pouco. João, que é amigo de Fiat Elba desde o tempo do exército, conseguiu dois ingressos para uma luta livre. A garota com quem João está saindo é uma daquelas que passam de maiô em frente ao ringue segurando uma tabuleta, primeiro round, segundo, etc. Eles chegam ao ginásio, que está com menos de cem pessoas. Um sujeito de smoking anuncia a luta entre Michael Jackson, o mocinho, e a Múmia Preta, o bandido. A plateia faz fiu-fius para a namorada do João, o gongo é tocado e a luta começa. Michael Jackson mistura voadoras e passos de break, a Múmia Preta cai, mas passa uma rasteira em Michael. A plateia vaia e xinga, a múmia vem às cordas e gesticula insultos.
Fiat Elba se lembra da primeira vez em que foi ao estádio ver um jogo de futebol. Ele, que nunca tinha visto o pai dizer palavrões, ficou um pouco chocado ao vê-lo gritar o tempo todo vai-caralho e filho da puta. A impressão que teve foi de que as pessoas iam ao estádio não por causa do jogo, mas para externar seus ódios. Seu pai, que uma vez se vingou do amante da mulher (madrasta de Fiat) colocando um pangaré velho e doente para cruzar com uma égua puro-sangue do haras do sujeito. Que vingança ele podia fazer com o tal dentista que, parece, está virando a cabeça da Luba?
Nakashima vem pensando na elegância das cosias esguias: canetas esferográficas, cegonhas, aqueles primeiros jatos comerciais, fabricados nos anos cinquenta. Lavínia, a jogadora de vôlei. Lavínia se parece muito com sua ex-mulher, Olívia (cabeça análoga ao vaso de flores pintado por Raoul Dufy), o mesmo biótipo, a mesma radiância da pele, a mesma eloquência gestual.
Aliás, isso sempre foi uma oposição fundamental para Nakashima, de um lado as coisas longilíneas, bem proporcionadas, retas, simétricas, reverenciáveis, e de outro as coisas balofas, amorfas, disformes, assimétricas, opacas, desprezíveis.
Essa dialética foi levada às últimas consequências por Nakashima no caso que o levou a perder o diploma de odontologia (caso que ele chama de o pequeno erro). Sua paciente, que se chamava Wilma, lembrava aquelas megeras dos desenhos do Pica-Pau, com um corpo que parecia um saco de cimento, um tom de voz rude e uma risadinha ofegante de obesa mórbida. E o assunto da mulher era doença. Só doença. Câncer. Tumores. Miomas e eczemas. Quanto mais podre, melhor. Nakashima, apesar de ser um profissional de saúde, sempre odiou falar sobre patologias. Um dentista, no seu entender, estava mais para marceneiro do que para médico. Porém, sua roupa branca devia ser um grande estímulo para a senhora saco de cimento, então, doutor, eu disse pra ela que não devia ser tumor, não, que devia ser só uma verruga com sebo. Ao ouvir aquela coisa inenarravelmente asquerosa, Nakashima teve um esgar de repugnância que fingiu ser um quase-sorriso e disse apenas, vamos lá?, já com a seringa na mão. Anestesiou-a e extraiu um dente frontal de Wilma, da mandíbula superior, um dente que estava intacto, o que a deixou parecida com alguém que tivesse se fantasiado de caipira para uma festa junina.
Desde o dia em que foi masturbado no carro Nakashima não voltou ao ginásio para ver os treinos do time de vôlei. Aquele contato sexual imprevisto com Lavínia rompeu a neutralidade de sua presença na arquibancada e inviabilizou o relaxamento que experimentava como espectador. Já os encontros sexuais com Luba no consultório continuam a acontecer, mesmo depois do término do tratamento dentário. Nos últimos foi acrescentado o artifício de uma lâmpada estroboscópica ligada durante o sexo. A lâmpada foi instalada no consultório como equipamento de segurança (ativada por sensores, desnorteia os eventuais invasores e reduz a possibilidade de consecução de qualquer ato ilícito, furto, etc.). O sexo feito sob flashes estroboscópicos, além de desencadear orgasmos violentos, dá a Nakashima uma sensação de irrealidade que o leva se sentir, durante a cópula, numa espécie de pesadelo agradável relacionado à instabilidade, mesa estável que depende de um piso estável que depende de uma laje estável que depende de colunas estáveis que dependem de um solo estável que depende de placas tectônicas estáveis.
Fiat Elba pesquisa e descobre que a faca mais letal que existe é uma tal de jagdkommando tri-dagger. Pensa em procurar um sujeito nas docas do ceagesp que aluga armas, mas decide usar uma faca comum, dessas que a gente tem em casa. O dia está quente e seco em São Paulo, faz quarenta dias que não chove, Fiat ouviu na TV um sujeito dizer que o índice pluviométrico está o mais baixo dos últimos dez anos. Essa é uma das palavras complicadas que ele conhece, pluviométrico. Antes de chegar à estação do metrô, lembra-se de outra: teriomórfico. A superstição de não se assobiar em bosques. O assobio que sente no ouvido quando vai ter um ataque epilético, aquilo que os médicos chamam de aura. Como é que um sujeito como ele, que conhece tantas palavras difíceis, foi ter um destino tão ruim?
Desce pela escada rolante e caminha até o guichê, onde compra duas passagens. Anda até a plataforma e aguarda o trem. Foi numa estação como aquela que ele teve o primeiro ataque, aos dezoito anos. Hoje a epilepsia está, de certa forma, sob controle. Fiat Elba sobe no vagão (faca no bolso, oito estações até Ana Rosa) e vai pensando na época em que morou no Guarujá e trabalhava como vigia noturno num prédio. Uma noite ele foi acordado por uma moça segurando um cão whippet que se debatia, meu cachorro está tendo uma crise, ele é epilético, não sei o que fazer, será que tem alguma clínica aberta agora aqui na região? Antes que Fiat Elba pudesse oferecer um de seus emergenciais comprimidos anticonvulsivantes o cachorro começou a melhorar. Ele e a moça, então, ficaram conversando. Fiat perguntou qual era o nome do cão e a moça disse, ainda não escolhi. Então Fiat perguntou se fazia tempo que ela estava com o cachorro e ela respondeu, rindo, que fazia três anos, eu já devia ter escolhido um nome, não é mesmo?
Por que o destino não colocou uma mulher como aquela, a do cão whippet, loira, jovem, educada, bonita, para ser sua? O destino é mesmo uma coisa engraçada. Você decide com certa displicência ir a uma festa, e lá conhece uma mulher com quem viverá os próximos quarenta anos. Ou então: você tem um namoro insatisfatório com uma mulher que tem vontade de fazer sexo só a cada dez dias, então você conhece na fila de um restaurante uma mulher que gosta de transar diariamente. O livre arbítrio e a fatalidade costumam ser cúmplices quando fatos cruciais acontecem conosco.
O trem para na estação Ana Rosa, Fiat Elba sai e atravessa a Rua Vergueiro e desce até a Paula Ney e vai vendo a numeração (Aclimação, bairro de burguês vacilão), então ele vê Luba carregando uma sacola de compras. Corre na direção dela, que quando o vê tenta entrar rapidamente no consultório e trancar a porta, mas não consegue. O barulho de vozes em tom de altercação faz Nakashima descer correndo da parte de cima da casa e se deparar com aquele sujeito segurando o braço de Luba, a lâmpada!, ela diz, liga a lâmpada!, Nakashima ativa o sensor e a sala submerge na iluminação estroboscópica, o que imediatamente causa uma convulsão em Fiat Elba (epilepsia fotossensível). Ao percebê-lo caído, se debatendo como um peixe que tivesse saltado do aquário, Nakashima desliga o sensor. Ele não entende nada do que acabou de acontecer, mas Luba entende, então Nakashima se senta no braço do sofá e pega o telefone e olha para aquele homem se debatendo no chão, e Luba diz alguma coisa e Nakashima olha pra ela.
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